O carioca Geovani Martins abre e encerra O sol na cabeça (Companhia das Letras), seu livro de estreia, com palavras que sugerem deslocamento. Rolézim é o título do primeiro conto do livro e Travessia, o do último. Tomados em par, os termos já sugerem algo do contraste social que muitas histórias do livro tematizam, assim como o trânsito entre diferentes registros da língua que o autor realiza com desembaraço incomum. Na dicção que alterna a gíria do morro (rolézim) com o registro culto de reverberações literárias (travessia faz pensar em Riobaldo, de Grande sertão: veredas, mas fala mesmo é de um traficante tentando desovar um defunto), a linguagem de Martins atravessa sem-cerimônia as demarcações que reiteram, na língua, as divisões sociais do Brasil. Essa alternância não sugere, porém, algo como a tentativa de invenção de uma nova língua geral, um amálgama que prefigurasse uma superação futura dessa divisão, ou mesmo um encontro feliz no qual os dois registros pudessem se fecundar de maneira mútua, para pensar de novo em Guimarães Rosa. Em vez disso, conserva o sentido de transgressão e a inflexão de contraste, chamando atenção para as divisões que desrespeita.
O rolézim do primeiro conto de O sol na cabeça é uma volta de um grupo de jovens da favela pela praia, num dia de “sol da porra” em que “até o vento que vinha do ventilador era quente, que nem o bafo do capeta”. Mas é também a incursão da fala dessas pessoas por um espaço do qual ela costuma estar excluída: uma obra literária publicada por editora de prestígio. De tal modo, que, ao mostrar que o livro pode ser também o lugar dessa fala, o conto faz com que o leitor habitual dessa produção (lançamentos literários chancelados por editoras respeitadas) tenha a sensação muito rara de que ele (branco de classe média) é quem está fora do lugar, pois volta e meia pode ter que ler de novo e com atenção para entender tudo que vai sendo dito.
É verdade, como observaram algumas das primeiras críticas ao livro, que um dos méritos de O sol na cabeça é “enfraquecer o privilégio dos grupos dominantes na batalha pela representação do que é o humano na literatura brasileira”, para retomar aqui a formulação aguda de Roberto Taddei na Folha de S.Paulo. Tão importante quanto essa humanização, porém, é o efeito de estranhamento que reitera de maneira desconfortável a distância que separa o universo do livro daquele dos bairros ricos. Os contos de Geovani Martins de fato enxergam o humano onde muitos só veem um caso de polícia (ou, na melhor hipótese, uma “questão social”, o que é sem dúvida melhor, mas ainda muito pouco). Abrem caminho assim para que o leitor do asfalto se identifique, em alguma medida, com esse mundo que talvez lhe pareça em regra tão alheio. Se esse efeito de identificação se realizasse sem sobressaltos, no entanto, O sol na cabeça seria um livro muito menos interessante, do tipo que permite ao leitor condoído se maravilhar por alguns momentos com a própria empatia para voltar em seguida à vida de sempre. É também um mérito dessas histórias que elas saibam evitar – por meio de cortes secos de narrativa, do tom distanciado, mesmo quando agressivo, da recusa à condição de vítima – as comoções e solidariedades de ocasião.
Os personagens de O sol na cabeça não são nem os “vagabundos” do populismo televisivo, para quem o apresentador pede tiro ou porrada, nem os desvalidos das campanhas de caridade, para os quais o público bem-intencionado manda doações no fim do ano. Os jovens que vão à praia em Rolézim não têm o dinheiro da passagem, mas se viram por conta própria, do jeito que dá, para curtir o prazer da cocaína, da maconha, do mergulho no mar, da visão das mulheres de biquíni: “mó lazer”. Tudo isso é muito precário, no entanto. Uma trombada com a polícia pode ter desdobramentos imprevisíveis, o papel de seda que falta para eles sobra para os playboys (“tudo mandadão, cheio de marra”), muitas daquelas mulheres não vão nunca dar bola para favelado. Martins constrói com habilidade essa oscilação entre prazer e perrengue, hedonismo e paranoia, armando com poucas frases toda uma cena dramática dos afetos mobilizados pela presença de um grupo de jovens pobres na praia.
A linguagem que descreve o rolé, do ponto de vista de um de seus participantes, é a da fala dos morros cariocas. Essa dicção não tem aí, porém, um sentido documental. Envolve a invenção de um ritmo, que dá um compasso bem-marcado às frases e ao desenvolvimento narrativo. A variação da extensão das frases orienta o ritmo da leitura e marca as ênfases da história, como por exemplo nesse flashback do narrador: “Eu nunca cheirei. Lembro de quando meu irmão chegou do trabalho boladão, me chamou para queimar um com ele nos acessos. Queria ter uma conversa de homem para homem comigo, senti na hora. A bolação dele era que um amigo que cresceu com ele tinha morrido do nada. Overdose. Tava pancadão na bike, se pá indo até de missão comprar mais, quando caiu no chão. Já caiu duro. Overdose.”
Os contos de O sol na cabeça são narrados em sua maioria na primeira pessoa, muitas vezes com interpelações dirigidas ao leitor ou a um interlocutor não nomeado (“Pega a visão”, “Pra tu ter uma ideia”, “tu tá ligado”, “Pra quê, menó”). Aqueles em que fica mais marcada essa construção de uma dicção cadenciada, com um compasso peculiar, lembram um pouco as histórias de Marcelino Freire. A diferença importante é que na obra de Freire essa construção de uma voz narrativa marcante é, na maioria das vezes, o efeito decisivo dos contos, que se apresentam assim como o “desventrar de uma condição”, na expressão do crítico João Alexandre Barbosa – a dicção da voz narrativa exprime certa experiência que serve de eixo ao conto e é, afinal, aquilo de que ele trata. Em Martins, o desenvolvimento da história é, em geral, mais determinante do que essa caracterização da voz, que não difere tanto assim de um conto para outro.
Martins, de apenas 26 anos de idade, apresenta de maneira muito precisa e econômica os personagens e situações das suas histórias, nas quais é frequente o ponto de vista da criança e do adolescente. Isso lhe permite sublinhar a estranheza de muito que se costuma tomar como natural na rotina da vida do Rio de Janeiro (e, por extensão, de outras cidades brasileiras), como na abertura de Espiral: “Começou muito cedo. Eu não entendia. Quando comecei a voltar sozinho da escola, percebi esses movimentos. Primeiro com os moleques do colégio particular que ficava na esquina da rua da minha escola, eles tremiam quando meu bonde passava. Era estranho, até engraçado, porque meus amigos e eu, na nossa própria escola, não metíamos medo em ninguém. (...) Tinha vezes, naquela época, que eu gostava dessa sensação. Mas, como já disse, eu não entendia nada do que estava acontecendo”. A perspectiva, no caso, é a de quem já entendeu muito bem o que estava acontecendo, mas a lembrança do olhar infantil é importante para criar o clima inicial de estranheza, que se intensifica no decorrer da história, conforme o narrador revela que passou a perseguir pessoas na rua para assumir o controle dessas reações e fazer delas uma “forma de pesquisa, estudo sobre relações humanas”. A vingança bizarra e um tanto sádica, narrada porém de forma desapaixonada, como uma espécie de pesquisa, tem algo das histórias de Rubem Fonseca. Mas os personagens de Martins, mesmo quando enraivecidos, têm crises de consciência do tipo que as histórias de Fonseca dispensam ostensivamente.
A violência dos contos de Martins vem matizada muitas vezes por uma nota de ternura, ligada ao apreço pelos amigos, às relações de vizinhança e aos laços familiares. O narrador de Rolézim lembra o “papo reto” do irmão mais velho que lhe disse pra evitar cocaína, o pai do protagonista de Roleta-russa diz que “prefere ganhar o filho pelo respeito, porque não confia em relações orquestradas pelo medo”, o garoto de O caso da borboleta tem o cuidado de não acordar a avó na hora em que ela mais gosta de cochilar, embora ele esteja com fome e não tenha comida pronta.
Esses dois últimos contos estão entre os mais notáveis do livro. Roleta-russa segura o leitor de cara com uma troca de provocações entre um grupo de amigos da favela, para em seguida criar um suspense aflitivo em torno de um menino que pega o revólver do pai pra brincar com esses colegas. Martins constrói a história sem pressa, dando espaço para que o leitor acompanhe o olhar da criança: “Não foi a primeira vez que Paulo brincou com a arma do pai. Toda manhã, logo que volta do banheiro, ele pega o ferro na terceira gaveta da cômoda que sustenta a televisão. Gosta de sentir o peso do revólver, de analisar cada pedaço do objeto, de imaginá-lo em ação. Sobre a adrenalina de mexer na arma bem ali na frente do pai, que dorme na cama ao lado, não consegue definir o que sente, se é bom ou ruim”.
O caso da borboleta é talvez a melhor história do livro, ainda que não seja aquela mais típica desses primeiros contos do autor. Em apenas três páginas, Martins cria um instantâneo memorável da relação entre um menino e sua avó. De maneira discreta, o conto acumula observações e imagens que criam uma atmosfera expressiva e sutil, sem chegar a desenvolver um enredo ou explicitar os conflitos de seus personagens. Um expediente que talvez possa ganhar mais peso nos próximos livros do autor, que às vezes ainda parece preso demais ao compromisso em buscar viradas e fechos para as histórias.
O sol na cabeça chegou às livrarias com direitos vendidos em oito países, para algumas das editoras de mais prestígio no mundo, como a francesa Gallimard e a alemã Suhrkamp. Feito ainda mais impressionante para quem nasceu em família pobre, em Bangu, teve que começar a trabalhar cedo e ao longo da vida precisou mudar de casa 20 vezes, num périplo que o levou a viver em diferentes favelas cariocas, como Rocinha e Vidigal. Por qualquer medida de sucesso que se queira adotar para um escritor iniciante, pode-se dizer que Martins já chegou lá. O leitor sai dos contos de O sol na cabeça, porém, curioso para ver onde mais ele ainda vai parar.
* Miguel Conde é jornalista, crítico literário e editor. Foi curador da Flip 2012