Quando descobre que é personagem de um livro, Harold Crick (Will Ferrell), o metódico auditor fiscal do filme Mais estranho que a ficção (2006), pede ajuda a um crítico literário interpretado por Dustin Hoffman, que elabora uma lista de perguntas para descobrir se a vida de Crick é uma comédia ou uma tragédia. Heloísa Peinado, protagonista de O fogo na floresta (Companhia das Letras, 304 páginas, R$ 44,90), terceiro romance de Marcelo Ferroni (foto), jamais recorreria a um crítico literário para descobrir qual gênero literário se aproxima mais de sua realidade. Ela parece convencida de que se sua vida fosse um livro seria um desses best-sellers escritos por empresários bem-sucedidos (ghostwriters) que misturam lições de empreendedorismo, autoajuda e transposições rasas da jornada do herói para o mundo corporativo. Talvez um livro como O egoísmo positivo, de Roberto Yamato, autor que só existe no romance e promete mudar a vida dos leitores com uma filosofia baseada em sete pilares. Mas, se Heloísa, como Crick, se submetesse a um rápido questionário, perceberia que sua vida se assemelha mais a um romance realista encharcado de ironia, uma sátira vigorosa do discurso empreendedor e do corporativismo.
Heloísa é carioca, tem 30 e pouco anos, marido, filho pequeno, irmão rico e pai numa casa de repouso. Depois de penar alguns anos numa assessoria de imprensa, conseguiu um emprego no Grupo Editorial Guanabara, que publica livros e revistas. É uma empresa confusa e mal-administrada, movida por fofocas e panelinhas. Heloísa sonha com uma promoção. Mas é demitida. Despede-se da empresa com um daqueles e-mails cheios de “sentimento de dever cumprido”, “hora de encarar novos desafios” e “não vou dizer adeus, e, sim, até logo”. Heloísa só fala no jargão corporativo: tem “contatos” e “projetos”, quer “retomar o networking”. Em sua busca por “novos desafios”, ela tenta se reinventar como empreendedora. Depois de fazer um curso sobre franquias no Sebrae, investe todo o dinheiro que tem (e um pouco do dinheiro dos outros) num “espaço recreativo” para crianças, o Sonho Lúdico. Mas alguma coisa (um narrador realista, talvez) insiste em atrapalhar sua narrativa empreendedora. Nada na vida dela dá certo. Heloísa tenta não se abater e se esforça para corrigir a realidade. Digamos que ela edita algumas passagens que não ficariam bem numa história de sucesso. Heloísa não conta para ninguém que foi demitida – diz que saiu porque quis – e mente que está atrasada para reuniões importantes quando tudo o que tem para fazer é estender as roupas no varal.
A orelha de O fogo na floresta sugere que “o descompasso que há entre os sonhos de Heloísa e a vida que lhe coube faz dela uma herdeira direta de Emma Bovary”. A comparação procede: Madame Bovary também confundiu o gênero literário de sua vida. Embriagada de leituras açucaradas, Emma, uma das primeiras heroínas realistas da literatura, imaginava viver um romance romântico, desses com bailes luxuosos e cavalheiros galantes. Emma, aliás, tomou boa parte das decisões que a levaram à ruína (e que arrancam risos nervosos do leitor) para ser fiel ao enredo romântico que ela julgava viver. Há outras semelhanças entre Madame Bovary e Madame Peinado: ambas se endividam para mobiliar um cenário adequado às histórias que imaginam viver, são pouco maternais, entediam-se com seus maridos pacatos e se entregam ao adultério. O amante de Heloísa é Carlos Alberto, um paulistano rico (será mesmo?) com vocação empreendedora –, quase o equivalente contemporâneo de um herói galante de capa e espada. “Esse é o seu problema. Você vive uma fantasia”, diz Fátima, a amiga-sócia, acusando Heloísa de bovarismo.
Se Flaubert inventou o narrador silente, que busca a palavra exata e não censura sua heroína, o narrador de Ferroni parece imitar o vocabulário de sua protagonista e se dirige ao leitor com expressões como “pasmem”, “pasmem de novo” e “quem diria”, que parecem saídas do discurso rápido e estridente de Heloísa. A narrativa é ágil e mordaz, movida a diálogos rápidos e muito discurso indireto livre, como se os personagens, cansados de interromper uns aos outros, quisessem interromper também o narrador. Às vezes, parece que a subjetividade e o intelecto dos personagens foram deformados pelo ambiente corporativo e seu vocabulário rico em conjunções fora do lugar. Eles são demasiado defensivos, pouco empáticos e recorrem a expressões vagas como “podemos construir uma coisa só nossa” e “acho que podemos contribuir muito nesse projeto” como se fossem palavras mágicas fartas de significado.
Tomar Heloisa como uma herdeira de Emma Bovary levanta algumas questões interessantes. Emma era uma provinciana entediada que passava o tempo agarrada à literatura açucarada. Heloísa vive na cidade grande, enfrenta o mundo do trabalho e é fluente no vocabulário corporativo. Mas ambas tentam se adequar às narrativas de sua época e medem suas vidas com réguas ideológicas implacáveis. No tempo de Emma, essa régua era o romantismo, uma ideia burguesa que valorizava o individualismo, os homens de ação e era um pouco hostil à razão iluminista. No tempo de Heloísa – o nosso tempo –, é o discurso empreendedor e meritocrático que oferece modelos de conduta e uma narrativa à qual é bom que todos os candidatos a herói se adequem. Talvez os novos romances românticos sejam os manuais de empreendedorismo-autoajuda que o Grupo Editorial Guanabara publica. Talvez O egoísmo positivo seja o novo Os sofrimentos do jovem Werther, um livro que indica o único modelo de vida que a vale a pena ser vivida. Ao propor essas reflexões por meio de um realismo irônico, O fogo na floresta faz um diagnóstico potente e preciso do tempo em que vivemos – ora cômico, ora trágico.