Um envelope comum, pequeno, que traz dentro dois livros de simples acabamento. Trabalho sem ISBN, um fracasso aos olhos do mercado. Digo: “fracasso”. As aspas servem para ressaltar o caráter performático dessa publicação, lançada neste ano por Chacal (foto). São dois livros e três obras: um fac símile de seu primeiro livro, muito prazer, ricardo (1971) e outra obra, mandaro, que reúne dois livros de Guilherme Mandaro (1952-1979) – hotel de deus (1976) e trem da noite (1979, póstumo).
No envelope em que vêm as publicações, é dito que elas são uma homenagem a Guilherme Mandaro, que deu” voz e dentes à poesia marginal, tirou uma geração do sufoco”. Foi dele a ideia de imprimir jovens poetas em um mimeógrafo, possibilitando a criação dos livros da chamada “geração marginal”. Chacal nos devolve Mandaro e agradece mostrando seu primeiro canino ao lado da obra de quem lhe possibilitou a existência.
O que chamo de “caráter perfomático” é esse agradecimento que corre por fora do mercado, recurso para baratear os custos de publicação de um livro comum e que funciona perfeitamente dentro da proposta de homenagear o poeta por emular aquele objeto transável dos anos 1970, o livro de poesia.
muito prazer já havia sido relançado em 2016 no Tudo (e mais um pouco), coletânea com a obra completa de Chacal lançada pela Editora 34. Mas era apenas o texto, sem os erros de digitação nem os desenhos de Sérgio Liuzzi, ou mesmo equívocos cronológicos (é dito que no livro que a obra em questão é de 1975 e, na mesma página, de 1971). Essas ausências nos fazem perder o componente artesanal e, de certa forma, carinhoso que o original possui. Com o fac símile, nos reaproximamos disso.
Talvez esse seja o livro que melhor mostre como a geração marginal é responsável por uma poesia que revela a existência de uma vida pulsante em um contexto de repressão e censura como foi o da ditadura. Isso é visto em diversas características dessa poesia – as temáticas, a linguagem, a forma de fazer circular o livro (vendendo de mão em mão nos bares).
muito prazer é uma obra jovial e alegre. Colocá-la ao lado dos trabalhos de Guilherme Mandaro nos dá um interessante quadro sobre como alguns assuntos (como a paixão) se repetem de forma muito similar nos dois poetas. Expõe também algumas distâncias: mandaro é bem mais melancólico.
Chacal nos apresenta em carta ao fim de mandaro o pouco conhecido poeta: “veio de uma formação rígida, intelectual marxista, by the book, grafocêntrica, eurocêntrica, para num salto escuro, deixar os sentimentos, as emoções, aflorarem”. É possível perceber em seus poemas traços que o aproximam a Ana Cristina Cesar – uma poeta da mesma geração, idade e cidade, com perfil mais erudito do que os que compunham a Nuvem Cigana (Chacal, Bernardo Vilhena, Charles Peixoto, Ronaldo Bastos). Mas há em Guilherme um “estar fora” (próprio da Nuvem, que tanto bebia dos tropicalistas, de Bob Dylan e outras referências musicais), uma busca da poesia em imagens do dia a dia que lhe é central, e não é tão presente na angústia cifrada de Ana C.
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O primeiro livro, hotel de deus, nos mostra a monotonia de todos os dias povoados por uma solidão que não se deseja dividir (mas que os poemas a todo tempo dividem conosco). A vida surge como uma forma de clausura, que tanto pode ser um quarto de hotel do qual se deseja sair, mas não se sai; quanto os restos da urbe; ou ainda a prisão do desencantamento, a constatação de que não existe nenhum teatro da vida e que há razão suficiente em tudo que acontece, o que faz do poeta um mecânico trôpego/ que canta e chora/ entre espelhos (letra rasurada) garrafas e mentiras/ e o que resta da cidade. Essas imagens de sobriedade surgem com forte tom melancólico.
Mas essa sobriedade é destruída pela própria existência do poema, pois nele somos forçados a ver o sonho por trás da materialidade das coisas. A todo tempo espiamos o hotel ou a rua, até percebermos que na calçada, um lenço vermelho nega o cimento – um dos mais belos versos do livro cuja força inevitavelmente me remete a William Carlos Williams e seu carrinho de mão vermelho próximo a galinhas brancas, do qual tanta coisa depende.
A noite, um dos cenários mais citados nos poemas de hotel de deus, dá a identidade do trem da noite. Veja os dois livros, são um hotel e um trem, signos de passagem associados a signos de imensidão – Deus e a noite. O hotel é fixo, está lá parado, e o trem anda. Mas para chegar fora do tempo regulamentar: não há trem noturno que não chegue atrasado / e noves fora meu coração é o mesmo. É o trem que traz a pessoa que o eu lírico ama, imagem de expectativa que o leva a pensar no jantar e, entre essas duas imagens, a impossibilidade da fuga – as alfaces ainda estão na geladeira/ e na minha gaveta tem dois passaportes/ que não passariam em nenhuma alfândega/ entre a ilegalidade e uma salada/ me resta a esperança da tua chegada.
Este poema sem título é o único do livro que fala da noite. Obrigo-me a voltar à obra anterior: Em hotel de deus, ela é cenário para situações diversas (uma conversa de mesa de bar, espaço onde navegam os astros, o tédio cotidiano). A expectativa gerada pela chegada desse trem da noite atrasado parece ser uma tábua de salvação para os dias. Pode ser uma mulher, como o poema sugere. Mas pode ser também a poesia.
Nas duas obras que compõem mandaro, a poesia surge como um sonho com pessoas que não se entendem/ com suas histórias e travessias, força que deixa de lado a morte/ como preocupação futura e firma com a vida/ o compromisso cotidiano das imagens; que transforma uma dor em dom. Essa dor de perambular os abismos, esse hábito de derramar/ tanto sangue pela poesia, é transformada no que o poema chama de dom de passar o sentimento/ de inventar/ no que é simples e natural/ no que falta e no que transborda.
Saio do livro e penso que Guilherme Mandaro desenha interrogações e alcança mistérios - somente eles, não suas soluções. Delineia a borda do abismo e nos fala que é preciso manter firme a bandeira da imaginação para sustentarmos nossas travessias. É este o motivo que nos faz sentir a certeza na sua voz que grita, antes do salto no abismo: dancei com a distância.
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Interessados podem adquirir o envelope com as duas obras na Livraria Timbre (R. Marquês de São Vicente, 52, Rio de Janeiro-RJ) ou diretamente com Chacal no email Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..