Quando crianças, reuníamo-nos até tarde na casa de um amigo causando o desespero dos seus pais e o latido incessante do cachorro. Um dos meus pensamentos na época era que esse cão, um fila brasileiro, poderia se levantar sobre duas patas a qualquer momento e sentar conosco na beira da calçada ou pedir a próxima no jogo de pingue-pongue. A lembrança, que mistura o assombro e o risível, me veio agora lendo César Aira.
O tipo de pensamento que Aira – escritor prolífico e publicado pelas mais diversas editoras – dispara a cada segundo nos seus livros é mais complexo, mas se serve também das possibilidades infinitas da imaginação: Um chá para o aniversário de Deus em que os únicos convidados são os macacos e uma partícula subatômica. As tintas da tela da Gioconda que se evaporam e se transformam em milhares de gotas espalhadas pelo mundo, cada uma com sua aventura pessoal. A visita de uma família a um grande cérebro de papelão. Um homem que encontra um gênio numa garrafa de leite e pode escolher entre ser Picasso ou ter um Picasso. Um carrinho de supermercado que tem vida própria e afirma ser todo o mal do mundo. Patti Smith, uma fã confessa, acerta ao dizer que “as histórias de Aira parecem fragmentos de um infinito e interconectado universo em constante expansão”.
Seus relatos são puro desvario, deriva e devaneio. Crônicas fantásticas que misturam histórias em quadrinhos, cinema, aventuras, recordações de Coronel Pringles - a cidade natal - e reflexões sobre o ato de narrar. “Nenhum relato é de todo fantástico. O fantástico é um desvio de contraste sobre uma base inevitavelmente realista. Isso produz uma alternância, um ritmo, de extensão e brevidade.” Em geral, começam colados na trivialidade do real, mas uma pequena fagulha de assombro se alastra rapidamente até tomar todo o relato e fazer com que ele continue página a página, incendiando a imaginação do leitor.
Nesse seu Continuação de ideias diversas, que sai agora pela Editora Papéis Selvagens, encontramos textos curtos mas nem por isso menos instigantes:
“A um fantasma perguntam o seu nome: responde dizendo um que não é o seu, não porque tenha querido enganar, mas por equívoco: acontece-lhe sempre. Sabe qual é o seu nome, mas no momento de dizer se confunde e diz outro. Por exemplo, chama-se Alice, mas diz Elena. E depois se pergunta ‘Elena? De onde pude tirar isso?’. Não conhece (não conheceu em vida) nenhuma Elena, nome de que nem sequer gosta especialmente.
Muitas vezes o humano vivo que lhe faz a pergunta tem que corrigi-lo, quando sabe de quem se trata. Outras vezes se corrige ele mesmo. Ou bem o erro não é corrigido. Com os vivos isso não acontece (…)”
John Cage, não à toa também um criador de procedimentos, é um dos personagens recorrentes do livro. Aira uma vez comentou que “Os grandes artistas do século XX não são os que fizeram obra, mas aqueles que inventaram procedimentos para que a obra se fizesse sozinha, ou não se fizesse.” E é isso a literatura de César Aira, a invenção de um procedimento “onde as palavras fariam amor”, segundo o slogan surrealista.
“Lógica da indeterminação e do acaso (em John Cage, por exemplo). São contrários. A indeterminação deixa algumas, ou todas, as decisões ao intérprete. Em troca, se se usa o acaso para compor, o resultado fica determinado da maneira mais precisa; para isso se usou o acaso, justamente, para ter uma determinação, e tê-la especialmente precisa.”
Mas também há a força de narrar o detalhe, de narrar para sempre.
“‘Etcétera’ é um mau augúrio para um escritor porque significa uma renúncia ao discurso; deixa-se que o leitor complete a frase ou a enumeração, sabendo que poderá fazê-lo. E poderá fazê-lo efetivamente porque isso que não se diz e que o ‘etc.’ cobre é óbvio. Significa o exato oposto do que é o trabalho do escritor: o cansaço, a inutilidade de seguir”.
Aos poucos, o leitor vai juntando esses pequenos fragmentos do universo de Aira. Ele pode abrir determinada página e ler, por exemplo, algo que se assemelha a um comentário sobre o discurso de ódio na internet:
“Por que o antissemitismo é tão propagado e persistente? Muito simples: por propagado e persistente que é o fracasso. Um antissemita é alguém que fracassou, na sua profissão, sua vocação, seus afetos, sua vida. E um fracassado sempre é antissemita. Na minha experiência ao menos não há exceções. O fracasso sempre implica os outros, nunca é algo puramente individual.”
Tudo, para a Aira, é matéria-prima. Todo objeto (carrinho de supermercado, gotas de uma pintura a óleo, cérebro de papelão) é um ready-made que mistura Kafka e Duchamp.
E esse Continuação de ideias diversas – em tradução de Joca Wolff – é uma espécie de universo em miniatura – um pré Big Bang – com figuras destacáveis. Cada fragmento parece estar prestes a explodir em um relato impressionante. E relato aqui é sempre uma palavra-chave porque é como César Aira chama os seus textos que invariavelmente estão sempre no passado. Em entrevistas, ele sempre revela que não lê os contemporâneos que escrevem no presente porque o texto fica achatado e perde profundidade.
Ainda temos o direito de esperar milagres quando lemos o Dr. Aira.