Resenha maravilhas.banais nov17

 

 

 

“A arte, direta ou indiretamente, afeta a vida das pessoas que vivenciam os eventos [sociais]. (…) E se natureza, amor ou amizade não tivessem ligação com o espírito social de uma época, a poesia já teria parado de existir. A quebra profunda na correnteza da história, que é a reorganização das classes na sociedade, promove mudanças no nível individual, aborda os problemas da recepção da poesia sob um novo ângulo e salva a arte da eterna repetição”.

Os dizeres acima são de Leon Tróstki, no livro lindíssimo Literatura e revolução, de 1924. Falem de Tróstki o que quiserem, mas foi ele o comunista que mais encorajou a crítica ao comunismo, tanto dentro como fora da URSS – sem nunca ter desistido ou boicotado o projeto comunista. E ainda teve um romance com Frida Kahlo.

 

“escrever como quem constrói o próprio chão no qual se pisa”

 

Cito Tróstki por dois motivos: para certas pessoas (#indiretasjá) entenderem que comunismo é uma linha de pensamento como outra qualquer e porque me lembrei dele ao ler os textos de abertura de maravilhas banais, livro novo de Micheliny Verunschk, que sai pela Martelo Casa Editorial e é lançado neste domingo (12), dentro da Balada literária.

Neles, há já uma posição meio que defensiva, ao explicar quase que se desculpando, que se trata de um livro de amor. Na introdução, o editor Miguel Jubé afirma: “quem produziu estes poemas se inscreve num momento de exceção política, numa escritura pré-exceção, mas cuja captação aponta para o tensionamento das relações humanas, para um tempo imergindo na incerteza e suas (necessárias) vias de reconstrução de sentidos”. Depois, num prefácio-poético-crítico-colaboração super bonito, a poeta Nina Rizzi continua: “deus quer ser amado. todo mundo quer ser amado”.

Eu até entendo aonde Jubé e Rizzi talvez queiram chegar – se adiantar, talvez, às previsíveis e preguiçosas críticas do tipo “como alguém pode escrever um livro desse em tempos tão sombrios?”. A resposta já está na pergunta. É impossível viver só na sombra, só de resistência. A filósofa política Jodi Dean fala, no livro The communist horizon (infelizmente ainda sem tradução para o português), que o propósito do ativista não pode ser a recompensa pessoal, o sentir-se bem consigo mesmo; o prazer do ativismo deve vir do ativismo em si. Mas defende, também, a força dos afetos na construção de redes pessoais que façam com quem ninguém desista.

O livro de Verunschk é meio como a tradição de 2 mil anos de caça de pérolas no Japão – a atividade é mantida principalmente por mulheres, que conseguem ficar não sei quantos minutos embaixo d'água sem a ajuda de nenhum equipamento. Mas que, para conseguirem levar seu trabalho até o final, precisam, de vez em quando, ir à superfície para pegar um pouco de ar.

Esse tom de “é um livro de amor, não levem a mal”, me intrigou bastante. Qual é, qual seria o problema de lançar um livro de amor em tempos de fascismo? Me pergunto a que ponto chegamos para que um livro com essa temática precise de justificativa. Ops, sei bem a que ponto chegamos: exposições estão sendo encerradas, petições assinadas por 360 mil pessoas pedem que eventos educativos sejam cancelados, o aborto em caso de risco de morte da mãe foi proibido (ou seja, somos obrigadas por lei a morrer), artistas e curadores são sendo levados para depor em condução coercitiva e professor universitário é intimado a depor na polícia federal acusado de promover o comunismo (segundo o juiz que o intimou, “não se pode disponibilizar bens públicos para a difusão de doutrinas político-partidárias por mais relevantes que sejam historicamente”).

 

“Jacó sorrindo para o nada”


Sentimos culpa de não estamos 24/7 lutando, mas essa seria uma tarefa impossível. Exercício mais importante agora, talvez, seja a assunção definitiva de que esses são os tempos em que vivemos – precisamos parar de nos chocar.

Diante do quadro atual, a resposta encontrada pela dissidência tem sido resistir em todas as frentes, misturando produção a ativismo, para reagir à chantagem moral disfarçada de bandeira política (tática utilizada por grupos proto-fascistas tipo o MBL).

Essa mistura é prática recorrente de Verunschk, uma das poetas mais atentas e combativas que temos no Brasil e que tem, dentro e fora do meio literário, resistido incansável e bravamente.

 

achar um lugar para guardar os pratos

 

Os poemas são de uma candura antiga, que não sabemos direito se reconhecemos de uma tradição poética já meio empoeirada, ou que já faz parte de um imaginário feminino ancestral. Os versos, imagéticos e quentes, me lembraram muitas vezes a tradição landay de poesia afegã (preciso perguntar a ela se meu palpite está certo), Anne Carson em the beauty of the husband (menos por semelhança narrativa e mais pela abordagem da Beleza como sujeito) e Shakira na linda canção Estoy aqui.


são mapas
as poucas letras
desse teu nome
que mal soletro?

Os dias no Brasil não dão sinais de que vão melhorar e já temos artistas suficientes pagando um preço alto por isso. Assim, de vez em quando, do mesmo jeito que o caçadora de pérolas vai à superfície atrás de um pouco de fôlego, é preciso nos darmos o direito de recuperar energias com a Beleza, para depois continuar dando as cotoveladas nas estruturas do Brasil pós-Temer.

E aí, com as baterias recarregadas, podemos voltar à premissa de Tróstki, “A arte da nossa época é realista, ativa, vitalmente coletiva e cheia de uma fé infinita num futuro melhor” e ampliando as noções de indivíduo ativo, como apresentado nos últimos dois versos (talvez os mais bonitos) de maravilhas banais:

que eu escrevo
para você

*

maravilhas banais, de Micheliny Verunschk, será lançado neste domingo (12/11), às 16h, no Centro cultural b_arco (Rua dr. Virgílio C. de Pinto, 426, Pinheiros – SP). Haverá sessão de autógrafos e conversa com a poeta.