Os dilemas que a sociedade brasileira vem enfrentando nos últimos anos – o recrudescimento do conservadorismo, as convulsões no mundo político e empresarial a partir das ações da Operação Lava-Jato, a destituição da presidenta Dilma Rousseff e as reiteradas denúncias de corrupção – colocam o desafio de compreendê-la para além da superfície das disputas político-partidárias. De perscrutar os sentidos das ações e os interesses dos agentes e grupos sociais envolvidos nesses processos, para compreender as formas com que o poder e a dominação social se rearticulam e legitimam no Brasil recente. É nessa seara que adentra, e não pela primeira vez, o sociólogo Jessé Souza em seu novo livro, A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato (Editora Leya, 2017).
Certamente não o único intelectual desafiado a compreender nossos dilemas atuais, o que vem singularizando as contribuições de Jessé Souza nesse sentido – em especial nos seus dois livros anteriores, A tolice da inteligência brasileira (2015) e A radiografia do golpe (2016), dos quais o atual pode ser visto como complemento – é que elas são marcadas por uma tentativa simultânea de questionar os próprios fundamentos teóricos que norteiam a compreensão da sociedade brasileira. Construir, nas suas palavras, um “diagnóstico acurado do momento atual” é objetivo declarado do livro – mas tal diagnóstico vai ser elaborado a partir da crítica da “interpretação oficial do Brasil sobre si mesmo”.
Essa particularidade da sua análise permite enxergar A elite do atraso sob uma tríplice chave de leitura: o questionamento das ideias dominantes acerca do Brasil; a proposição de uma interpretação distinta; e a construção do diagnóstico dos dilemas atuais. Não são elementos separados da análise do autor; ao contrário, são momentos interligados de uma reflexão essencialmente preocupada em desvendar quais são, e como atuam, as forças sociais que constroem a verdadeira corrupção na nossa sociedade, aquela “que impossibilita o resgate do Brasil esquecido e humilhado”.
A contraposição entre uma corrupção “real” e uma “dos tolos” é mesmo um dos eixos estruturantes do livro. Esta é a que reduz a corrupção (“no sentido de enganar os outros para auferir vantagens ilícitas”) à esfera de atuação do Estado e, assim, dos políticos profissionais. A ideia restrita do “Estado como único corrupto”, em que outros agentes sociais são invisibilizados, é o que tem fundado, segundo Jessé Souza, não só o tratamento midiático da questão, como também a Operação Lava-Jato, que se tornou símbolo, no senso comum, de combate à corrupção no país.
Mais do que isso. Essa ideia, sintetizada no conceito de “patrimonialismo”, seria o cerne da visão predominante sobre o Brasil, construída e reforçada ao longo do tempo por um conjunto de intelectuais referenciados da direita à esquerda do espectro político (particularmente, Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro), e pela sua divulgação recorrente nos centros de ensino e na mídia.
Não se trata de uma crítica inédita nos trabalhos do autor, que já vem realizando há anos essa leitura pouco usual do pensamento social brasileiro, e contribuindo assim para o desvelamento de problemáticas que passam ao largo das interpretações mais correntes (ainda que, algumas vezes, sua crítica efetue uma transposição sem muitas mediações históricas entre a leitura das obras de autores consagrados e sua recepção e influência política). De todo modo, embora também discuta as deficiências conceituais da noção de patrimonialismo – que aponta para a existência de uma camada social incrustada no Estado e que se apropria de bens e funções públicas para fins privados –, revisitando a obra de autores que contribuíram para sua formulação; o foco, a meu ver, está sobretudo em mostrar as implicações políticas da utilização dessa ideia para compreender os problemas do Brasil. E, nesse sentido, o conceito seria inadequado e falso por duas razões principais: de um lado, porque “as elites que privatizam o público não estão apenas nem principalmente no Estado” e, de outro, porque “o real assalto ao Estado é feito por agentes que estão fora dele, principalmente no mercado”.
Em outras palavras, com a ideia de patrimonia-lismo, “a real e efetiva privatização do Estado, aquela feita pelos interesses organizados do mercado sob a forma de cartéis e oligopólios, e sob a forma de atuação dos atravessadores financeiros, se torna completamente invisível conceitualmente”. E é desse modo que a noção de patrimonialismo abre caminho para uma visão seletiva de corrupção, que contrapõe o Estado, considerado inerentemente corrupto, a um mercado quase divinizado – fundamento do discurso que, para o autor, teria orientado a cobertura política da mídia e as ações da Lava-Jato nos últimos anos.
Mas o problema da noção de patrimonialismo, e da corrupção seletiva que ela sugere, está também nos interesses que ela esconde (no caso, da “elite do dinheiro” característica do capitalismo financeiro) e nos problemas sociais que não permitem enxergar. Nesse sentido, e contrariando os discursos políticos e midiáticos mais frequentes, o esforço de Jessé Souza vai ser tentar mostrar que “o problema central do país” não está na corrupção supostamente concentrada no Estado, e, sim, “no abandono secular de classes estigmatizadas, humilhadas e perseguidas”. A função da ideia de patrimonialismo seria, justamente, desviar a atenção desse problema.
O autor argumenta que a formação da sociedade brasileira reproduz no tempo o abandono de uma classe social desprovida das condições e das oportunidades para ser bem-integrada no mundo moderno. Marginalização que remete à escravidão e à forma como os ex-escravizados foram abandonados à própria sorte e sujeitados a todo tipo de perseguição e estigmatização. A continuidade, sem quebra temporal, entre a escravidão e a produção de uma “ralé de inadaptados ao mundo moderno” legou aos nossos excluídos todo o ódio e desprezo pelos mais frágeis. Essa, segundo o autor, é a grande questão social, econômica e política do Brasil – a qual a ênfase atual na corrupção unicamente do Estado não permite enfrentar.
É nessa reflexão que, a meu ver, reside a grande contribuição do livro para a compreensão do Brasil de ontem e de hoje. Ainda que pontos específicos da sua análise fiquem pendentes de maior desenvolvimento – particularmente, a compreensão do papel do racismo no reforço das desigualdades e ódios de classe, questão essencial para entender o caráter do preconceito e das discriminações com relação aos “de baixo”, que o autor tão habilmente traz à tona –, resta evidente no livro como a sociedade brasileira não só construiu uma camada de “despossuídos”, cujas dificuldades de inserção social são reproduzidas até os dias de hoje, como também naturalizou a sua exclusão.
Segundo ele, o “que permanece do escravismo é a sub-humanidade cevada e reproduzida, a crença de que existe gente criada para servir outra gente, e se um governo existir para redimi-los deve ser derrubado sob qualquer pretexto de ocasião”. E é sob esta última chave interpretativa que o autor busca compreender a queda do governo Dilma. Na sua perspectiva, o fato de ter sido “essa classe de desprezados sem culpa” o foco das políticas compensatórias dos governos do Partido dos Trabalhadores, teria levado ao reforço de um “pacto antipopular” entre as elites do dinheiro e frações da classe média, voltado a garantir a reprodução de uma “classe de carentes”, de uma sub-humanidade “condenada a serviços brutos e manuais desvalorizados”. Ainda que esse “pacto”, e aqui está o ponto essencial, tenha assumido a forma do combate à corrupção apenas do Estado, na medida em que a tese do patrimonialismo aparece pressuposta em praticamente todas as análises divulgadas na mídia e, como vimos, responsabilize apenas o Estado e suas elites corruptas (especialmente aquelas identificadas com a esquerda) por todos os males nacionais.
De acordo com o autor, a personalização do combate à corrupção num partido específico, associado historicamente (ainda que não sem contradições) à luta contra a desigualdade social, nada mais faz do que associar o princípio da igualdade social com algo negativo. No discurso hegemônico, o combate à desigualdade, via instrumentos estatais, se torna um mero instrumento para a corrupção do Estado, e assim deixa progressivamente de ser uma meta que a sociedade deve almejar. “É a igualdade que é tornada meio para um fim, no caso a suposta corrupção, o que implica retirar sua validade como valor, ou seja, como um fim em si”, afirma.
Certamente, essa reflexão diz muito do Brasil atual, para além da questão específica da corrupção. Fala de um país que precisa incorporar de modo permanente o princípio da igualdade – alternativamente, de combate à desigualdade – como motor das lutas coletivas. Fala de uma articulação entre classes privilegiadas e uma esfera pública pouco plural e democrática, que dificulta a compreensão dos problemas urgentes do país. Fala, essencialmente, de uma sociedade que ainda não realizou seu “aprendizado político” coletivo para tornar prioridade a inclusão social de setores estigmatizados e marginalizados. E, por tudo isso, a análise de Jessé Souza – mesmo que aspectos específicos do seu argumento possam ser problematizados – fornece um caminho profícuo para se começar a entender os meandros de nossos dilemas políticos atuais.
Décadas atrás, o sociólogo Florestan Fernandes buscou compreender padrões de comportamento das elites brasileiras que visavam controlar os processos de mudança social de modo que seus privilégios permanecessem sempre intocados. Guardadas as devidas proporções e especificidades de cada autor, o espírito que anima Jessé Souza em sua análise parece ser semelhante. E, nesse sentido, “a elite do atraso” é uma expressão simultaneamente provocadora e indicativa de dificuldades ainda a serem enfrentadas.