Ó jardineira, por que estás tão triste?
Mas o que foi que te aconteceu?
Há cerca de dois anos, pedi a Silviano Santiago (foto) que escrevesse um ensaio pensando os 30 anos de Stella Manhattan, seu romance sobre sexílio (sexo + exílio) e a necessidade primordial do supérfluo e do artifício em tempos sombrios. A reflexão veio numa forma que hoje lhe interessa muito: um estudo sobre resistência, um retrato do artista quando velho. Ele sabe que precisamos não apenas de literaturas de formação, mas de literaturas de persistências.
“Tenho 79 anos. O romance Stella Manhattan, 30”, escreveu Silviano, para continuar: “Stella Manhattan é proverbial. É juvenil, intuitivo, lúdico, estiloso (camp) e tem uma moral falocêntrica (a revolução comportamental a reclamava então) que pode ser lida na batida do samba Quem cochicha o rabo espicha, cantado por Jorge Ben Jor. Não fique pelas esquinas, cochichando. Fale. Quem fala, o phalo espicha. Passo a seguir Jorge, ao pé da letra: saia pelo mundo afora fazendo amizades, conquistando vitórias. Também não fique pensando que essas vitórias serão fáceis. Pois nesta vida de perde e ganha, ganha quem sabe perder.”
Seu ensaio sobre como o tempo tratou Stella ou sobre como Stella acendeu um cigarro, olhou-se no espelho, driblou A Praga (aquela!), as viradas politicas e chegou até a esses anos dois mil e alguma coisa reaparece na reedição da Companhia das Letras. Com sua novíssima e necessária capa magenta-cintilante, o romance se mostra tão, tão necessário já em sua epígrafe – a marchinha de carnaval dos anos 1930, que no começo desse texto repito porque hoje em dia não há como fugir da tristeza. Sim, a jardineira parece estar ainda mais triste.
Não é um céu de brigadeiro que espera Stella em 2017. Mas chega a ser irônico que – em tempos de censuras a obras de arte, quando a possibilidade de cura gay é discutida em jornais sem assombro, como uma possibilidade banal, como um desejo de mercado – a obra pioneira da nossa literatura queer retorna às livrarias. E retorna mais magenta do que nunca.
Stella é subversiva e, também, repetimos, “juvenil, intuitiva, estilosa” já em seu primeiro parágrafo, embalado pelo melancólico refrão de Orlando Silva: “Stella Manhattan cantarola a canção enquanto abre a janela da pequena sala do apartamento em que mora, e logo em seguida respira o ar frio e poluído da manhã de outubro em Nova York. Incha e desincha os pulmões e o corpo quente exala uma compacta nuvem de fumaça pela boca como se fosse outdoor de cigarro ou de ferro de engomar na Times Square. Wonderful morning! What a wonderful feeling! Cantarola em silêncio”. O livro começa, então, com um exercício de respiração. Mas o que contrai os pulmões não é só o ar frio lá fora; é a cidade, é a promessa de vida nova, é o folclore de renascimento que constitui o corpo de todo exilado. E imagine o corpo de um sexilado!
Stella é também Eduardo, mineiro afastado para NY no final dos anos 1960 por seu desejo de desafinar da moral da época, da ditadura brasileira e da ditadura da sua distinta família católica-amém. Eduardo e Stella são também a cidade à frente, uma metrópole à beira de uma revolução – no caso a de Stonewall, o movimento de emancipação dos direitos gays, que levou drag queens a se revoltarem pela primeira vez contra os policiais que faziam batidas violentas por bares e boates do bas-fond. Queen bees are stinging mad – anunciavam os jornais nova-iorquinos, boquiabertos, quando de Stonewall. A camélia pode ter até caído do galho, ter dados dois suspiros, mas não morreu.
Pois a juvenil Stella é Eduardo, é Manhattan, é a ditadura no Brasil, é Stonewall e tantas outras coisas nessa obra em que tudo se desdobra, dos personagens que se sabem vórtices carnais de suas fantasias – as incríveis Lacucaracha e Viúva-Negra –, passando pelo gênero literário – um romance que é também ensaio, porque sabe que o olhar que importa não é o frontal, mas o do soslaio, aquele que deixa a dúvida, o olhar da madrugada. E Stella é também a prova do quanto Silviano é um dos autores de ficção mais radicais e versáteis das últimas décadas. Um autor capaz de recuperar Graciliano Ramos, de fazer o retrato do artista quando velho de Machado de Assis e de saber que o amor são mil rosas roubadas.
Mas, no romance aqui específico, o que lhe importou foi fazer um livro como um poema, que pode ser lido em voz alta, que pode (e até precisa) ser performado e que pede “ao leitor que pegue as palavras com as mãos para que as sinta como se fossem vísceras, corpo amado, músculo alheio em tensão”.
É, Stella, vai ser preciso muito refrão, muita pinta, muitos conselhos da sua vizinha Lacucaracha para que você encare o Brasil em 2017 (e não adianta voltar para NY, que a coisa lá também está feia!). Mas seu retorno é necessário. Preste atenção: tempo só lhe remoçou, a noite lá fora está apenas começando e pode ter certeza de que “este mundo é todo seu e tu é muito mais bonita...”