Lucrecia Zappi VicentedePaulo A

 

 

Para Sérgio Buarque de Holanda, no comparativo entre cidades lusitanas e hispânicas, existe um sistema no qual o ponto de centro está na fórmula: fantasia versus realidade. Nas primeiras, como as de nosso território, a organização visou objetividade – linhas de ordem que estão confluindo com o espaço em foco, praças delimitadas pelas dimensões reais do terreno, ruas que acompanham o caminho natural do relevo. Já nas segundas, de acordo com o historiador, aconteceu algo de imposto, do campo da ficção – o urbano hispânico fez uso da malha quadriculada imposta pela corte de Madri. Não importou, na época da colonização, a discrepância entre os espaços, esse conjunto de diretrizes foram obedecidas. Uma cartilha de invenção estava acima da paisagem tangível.

Em Acre, da escritora argentina Lucrecia Zappi – lançamento da editora Todavia –, erguem-se duas cidades nas quais o embate entre criação e espaço encontra sua saída na subjetividade. No romance, os desvios psíquicos dos personagens justificam cidades cujo contraponto político beira o inexistente. Tanto Santos quanto São Paulo são engolidas por um molde que se forma, na maior parte dos capítulos, a partir de oscilações do eu, episódios de ciúmes, paranoias, rompantes afetivos, paralelos da memória. Não se trata de uma desaprovação à “malha quadriculada” escolhida por Zappi, mas de entendê-la, no que se refere às representações do espaço, como um mecanismo que se liga, em especial, aos desapontamentos da elite. A escritora pauta a sua cartilha de invenção sob um espaço no qual a fantasia está a favor dos pavores da classe média e pouco se é questionado sobre as ações xenofóbicas, transfóbicas, classicistas dos personagens.

A condução narrativa do romance baseia-se no longo relacionamento entre Oscar, Marcela e Nelson – o último, elemento destoante da história, mudou-se para o Acre após anos conturbados de juventude na área santista. O casal, ambos proprietários de estabelecimentos comerciais – loja de iluminação e restaurante self-service –, mora, desde 2005, no prédio em frente à Praça Rotary, espaço central para o argumento do livro. Entre os personagens periféricos ao triângulo perturbado estão: dona Vera, mãe de Nelson; Décio, porteiro do edifício, localizado na Vila Buarque; Adriano, o síndico, assassino de imigrantes, figura que apresenta todas as características de um discurso de ódio, de fato, presente na população paulistana. Simultaneamente a esse cenário, estão as lembranças da adolescência em Santos, narradas, assim como todo o livro, por Oscar.

As passagens sobre os eventos na cidade litorânea são, do ponto de vista da linguagem e da forma, bem-sucedidas, quando em cotejo com o condomínio paranoico da Major Sertório. Ao descrever as caminhadas entre a casa de Tuca e a praia, a construção de amizades com os meninos da vizinhança, o início de sua paixão por Marcela, as brigas entre as turmas, a descoberta do surfe e o sofrimento calado diante da morte da mãe, Oscar vivencia e sente a paisagem. Nesses capítulos, Zappi coloca a subjetividade à disposição de uma perspectiva de mundo, o espaço urbano ganha sentido através do microcosmo de seu personagem. Desta feita, a carga afetiva sobrepõe-se no texto e flui de maneira empática durante a leitura.

Mas é na construção dos vínculos entre os moradores do Edifício Trapézio Imperial que estão marcadas as escolhas do enunciado espacial em Acre. Toma-se como exemplo a cena do assassinato do boliviano: Marquês de Itu, Amaral Gurgel e Doutor Vila Nova são ruas citadas pelo narrador, que acompanha Adriano em uma volta pelo bairro, na madrugada. Durante a deriva dos personagens, um encontro com a travesti Suzi e, posteriormente, tiros finais no corpo do imigrante, já machucado. O síndico dispara frases como: “Olha que é uma travesti autêntica, nada dessas coisas operadas. Travesti goza porque não é mutilado. Sente tesão”, ao passo que Oscar permanece em sua letargia, absorto nas desconfianças que guiam o seu casamento. Não existe um rebatimento político da voz predominante e isso atinge a psicogeografia da São Paulo de Zappi, tão próxima à realidade da gestão municipal liderada por João Doria.

Ao formular o manifesto da Internacional Situacionista, Guy Debord pensou em uma visão total de cidade. Com essa premissa, a teoria da deriva pretende transformar os espaços arquitetônicos e urbanos por meio da intervenção dos habitantes, agentes construtores motivados pelo espaço de liberdade. Existe um desleixo de organização no sistema situacionista porque o sujeito deve descobrir a sua maneira de resistir ao espaço que lhe foi dado. Em certo grau, os conceitos de Debord dialogam com as perguntas feitas por Buarque de Holanda acerca dos territórios latino-americanos; quais os limites e as influências entre realidade e ficção quando se trata de espaço? Como os fragmentos geográficos tornam-se responsivos ao contexto histórico, político? Acre, segundo romance de Zappi, toca na superfície da temática e promove uma contramão confusa aos debates que envolvem definições entre literatura, espaço, cidade. Uma peça do quebra-cabeça psicogeográfico falta e, sem ela, a cartografia pode resultar obsoleta.