Estive em Havana por 10 dias no ano passado. Era uma cidade em um eufórico estado típico das semanas “pré”. Havia um show que se proclamava histórico – e histérico – para acontecer: o dos Rolling Stones, a banda que iniciaria sua carreira de polêmicas e lambeção dos padrões três anos após a Revolução Cubana. Havia ainda expectativa da visita de Barack Obama, essa aí de fato histórica com maiúscula. A impressão é de que a ilha seria atingida por uma supernova a qualquer momento. Mas o que mesmo estava para acontecer? Isso ninguém entendia, mas a excitação no ar era sólida, dava pra perfurar com uma faca.
Obras monumentais de restauro tomavam conta do centro histórico. Era possível se conectar à internet em qualquer gambiarra da esquina. No centro da capital e nos carrinhos de som a esquadrinhar o lusco-fusco do Malecón, o hit Sorry de Justin Bieber tocava sem parar. Vejam só: justo naquele momento, uma belíssima bobagem pop sobre o perdão. “Yeah, is it too late now to say sorry?” – dizia o refrão. Mas pedir perdão a quem e por quê? A canção não trazia a resposta. O importante era a ênfase da pergunta.
Mais importante: Fidel Castro estava vivo. Não importava bem como, mas vivo. Um pedaço do século XX ainda pulsava.
Um ano depois, é meio difícil entender o que ficou da excitação daquele março. O circo dos Rolling Stones há muito baixou a lona, deixando para trás um documentário de brilho burocrático – ah, como é bom algumas vezes apenas esperar pela festa... A política de abertura que Obama acenava foi substituída pela muralha de Trump, e a morte de Fidel deixou o século XX lá atrás. Aquele março que eu vi não existe mais. É documento. É hoje só o frio na barriga das semanas “pré”.
A data tão próxima e hoje tão distante me veio à cabeça durante a leitura de Trilogia suja de Havana, obra máxima do cubano Pedro Juan Gutiérrez (Alfaguara). Aqui está desenvolvido o tema mais popular da narrativa de Gutiérrez (presente ainda no romance O rei de Havana, também relançado pela editora): a Havana famélica dos anos 1990, que sofria com o colapso do bloco soviético, o estudo de caso ideal para atiçar o ódio dos que ostentam uma visão digna de rascunho de tablóide do regime de Castro.
A Havana de Gutiérrez não existe mais como uma verdade máxima.E muito menos a cidade que vi no ano passado. Mas há um problema nessa Havana de Trilogia que me despertou a atenção. Antes de começar esse texto, fiz uma pesquisa no Google para entender como havia sido a recepção da obra na Europa e nos EUA, quando do seu lançamento internacional, no início da década passada.
O que encontrei não me surpreendeu: a maioria do discurso crítico exaltava o lado barra pesada, sujo, epidérmico da cidade que emergia do texto do autor. Se Gutiérrez propunha uma literatura para longe do exotismo do Boom literário hispano-americano, com uma geografia urbana, realista e cheia de odores, a recepção da sua literatura caía numa expectativa justamente de um suposto fracasso da Revolução, mais um exemplo do triste folclore dos trópicos para ser colocado em praça pública. Trilogia suja de Havana foi lida mais como um bestiário da América Latina tal e qual antes ocorrera com clássicos do realismo mágico como Cem anos de solidão ou Pedro Páramo. Mesmo sem matriarcas voadoras ou patriarcas zumbis, o exótico persistia até onde não estava.
O que a crítica fascinada por tanto sexo inflado por rum barato e estômagos vazios (signos do quanto algo dera errado em Cuba) escanteou foi justamente a beleza do texto do autor.Mesmo muitas vezes soando como cachorro em volta de repetidos signos, palavras e sensações por centenas de páginas, Gutiérrez se mostra aqui como um dos maiores maestros da literatura hispano-americana contemporânea. Sua literatura é cheia de imagens simples, espantosas e infeccionada pela selvageria de quem tem a cidade na pele – “Gosto de me masturbar cheirando minhas axilas. O cheiro de suor me excita. Sexo seguro e aromático. Principalmente quando estou excitado de noite e Luisa sai por aí para ganhar a via. Mas já não é a mesma coisa. Aos 45 anos, a libido se reduz. Tenho menos sêmen” – começa assim um dos capítulos, para deixar claro que é pelo corpo que se conhece o espírito e não o contrário. Penso em Henry Miller e Rubem Fonseca nos seus melhores momentos.
Com um desejo à flor da pele, o protagonista/alter ego do autor sai pela cidade em colapso sem nunca deixar clara a crise que vitimou seu país. Aqui não é a política tradicional que fala. Aqui é o corpo. O corpo e suas demandas severas.
Em 2017, é preciso ler Gutiérrez sem o desejo de erguer o documento de um país, que, como todos, tem suas fases, seus êxitos e fracassos, ou de querer achar o exótico lá fora. É preciso ler obras como Trilogia suja de Havana ou O rei de Havana pelo prazer do texto e pela repulsa que ele causa em vários momentos. Gutiérrez não é um documentarista. É um escritor de primeira grandeza. E a grande literatura, assim como os corpos lá fora, can’t get no satisfaction.