Brilham os vaga-lumes. Brilham e somem, para reaparecer. Aproximam-se dos frágeis voadores os potentes holofotes – eles investigam a presença dos pequenos animais. Eles são um termômetro da qualidade do ar (?). A luz forte os oprime e mata, ou afugenta. Passam os holofotes para outras áreas. Voltam a brilhar os vaga-lumes.
São outros ou os mesmos?
O contraponto entre os vaga-lumes e os holofotes do “reino e da glória” são propostos por Georges Didi-Huberman e se aplicam a um romance com forte tom memorialístico: A mulher de pés descalços, da ruandesa Scholastique Mukasonga. A obra foi publicada pela editora Nós, com tradução de Marília Garcia.
Na trama de Mukasonga, há Stefania, uma mãe de família obcecada pela ideia de salvar os filhos do genocídio em Ruanda. Um crime conhecido: a etnia hutu matou 800 mil indivíduos da etnia tutsi em 1994. Desde os anos 1960 a opressão de um povo por outro era a marca. Ao tomar conhecimento da matança, só cabia à escritora cumprir o seu ofício – escrever. A mulher de pés descalços é de 2008 e a escritora já declarou, em entrevistas, que o genocídio fora o motor inicial de sua escrita.
Stefania é a mãe da narradora, uma personagem de dois batismos. O pai a chama Scholastique, nome francês; a mãe, Mukasonga, o nome ancestral. Clivada (ou seja, no entrelugar) por essas duas heranças, a grande família de Stefania (sete filhos e o marido) é o núcleo a partir do qual os costumes e hábitos de uma cultura oprimida é narrada. O livro é constituído por uma narrativa fluida, simples e acessível, sem floreios estéticos. É a marca daqueles que desejam dividir algo com o máximo de pessoas possível, para manter viva uma luz em processo de desaparição.
Georges Didi-Huberman trata dessas narrativas que buscam perpetuar um mundo, um grupo, em seu livro Sobrevivência dos vaga-lumes (Editora UFMG). Nele, o autor tece uma teia de referências críticas que partem de Agamben (as ideias dos regimes políticos pautados pela glória – a grandiosidade e opulência de nazistas, fascistas e do regime nortecoreano são exemplos) – que, com seus potentes holofotes, seguem buscando e oprimindo os vaga-lumes. Estes são as luzes orgânicas e intermitentes que acendem e apagam, acendem e apagam. Assim, perpetuam e dão sobrevida a si mesmos e a seu mundo: por meio de suas obras. “Narrar é resistir”, diz Guimarães Rosa. São exemplos de vaga-lumes o Diário de Anne Frank; e o Sonhos no Terceiro Reich de Charlotte Beradt (recém-lançado no Brasil pela Três Estrelas), que não permitem depreender a natureza do regime nazista, mas ofertam “uma ‘sismografia íntima da história política do Terceiro Reich” (p. 135).
É nesse sentido que A mulher de pés descalços é a obra de um vaga-lume. As longas descrições de hábitos mantém o mundo vivo. Lembro Theodor Adorno, para quem o romance do século XX havia deixado de lado as narrativas realistas, descritivas, porque jamais poderia competir com as representações verossimilhantes do real construídas pelo cinema, pelo jornalismo, pela fotografia. Isso levou o romance a outros caminhos de linguagem (a obra de Joyce é exemplar nesse sentido).
Mas as narrativas que se preocupam em recriar, em detalhes, e por meio de palavras, um mundo hoje fragmentado ou destruído, ainda têm lugar cativo nas nossas ficções por serem uma necessidade histórica. Se colocam em par com outras obras que recuperam aquele povo morto. Por isso, a narrativa escrita não se torna redundante em relação às narrativas fílmicas ou jornalísticas.
O fato de tratar Stefania pelo nome próprio e, às vezes, por “mamãe”, reforça a ideia do livro como uma performance documental de forte caráter afetivo.
Por meio dela, Mukasonga discorre os hábitos das famílias tutsis e os seus medos. As antigas habitações, as obrigações quase religiosas das mães que fazem, nos pequenos e grandes momentos, o Cristo dividir espaço e afeto com costumes antigos (como o de pronunciar palavras a uma queimadura na pele dos filhos para que não haja piora). É uma narrativa afetiva, na qual o ato de catar piolhos ganha ares de afago (o cafuné); mesmo a disputa dos alunos para ver quem ganha um pão feito pela kilimadame, mulher egressa da capital que abre uma padaria nos rincões para onde foram desterrados os tutsis. O choque em relação à realidade do Brasil dá ares de graça ao que é narrado no livro. Nuances assim fazem com que nos engajemos na narrativa.
A obra de Scholastique Mukasonga é repleta de uma vida clivada entre o encantamento de um mundo que perpetua práticas ancestrais e o desencantamento que a modernidade, e seu trem racional, trouxe para o mundo ocidentalizado. Uma vida que, assim como Stefania, pereceu no genocídio. Mas que continua entre nós, tal qual os pirilampos.