Benfeitoria a Cia das Letras fez ao lançar no início desse ano, o Poesias reunidas de Oswald de Andrade, esse destruidor/construtor da moderna poesia brasileira. Uma felicidade muito grande voltar a ler Oswaldo, seus poemas minutos, suas deambulações comprimidas. Trip infinita ler suas viagens, seu olhar que vai colhendo imagens, transformando em verso engraçado, enxuto, crítico.
Oswaldo tirou o poema do campo da palavra pernóstica e o trouxe para o campo do olho: poemas kodak. E mais que um retrato enquadrado, cria uma composição onde situações se superpõe em metonímias bizarras. Livro bom é aquele que dá coceira nos dedos pra encarar a folha em branco. E escrever fica irresistível com Oswald. Depois que ele desbastou a juba inútil e pedante da poesia parnasiana, mero show-room verbal, e trouxe de novo a palavra “natural e neológica” para dentro do poema, tudo ficou mais simples.
Guararapes
japoneses
turcos
miguéis
os hotéis parecem roupas alugadas
negros como num compêndio de história pátria
mas que sujeito loiro.
Nunca mais a poesia portfólio de habilidades inócuas para herdeiros do patriarcado posarem de poetas. Mas a tabelinha olho-palavra da gente comum. Não mais o rococó, trololó, de Bilac, Ruy Barbosa, Coelho Neto, mas a faca afiada com humor e alma da fala do homem da esquina.
Fim e começo
a noite caiu com a licença da Câmara
se a noite não caísse
que seriam dos lampiões?
O tempo das máquinas, da industrialização acelerada, chegava arrasador e pedia outra poética. E Oswaldo forjou esse novo design, olhando na cara da linguagem, se aprochegando da gente nativa, talhando à tacape e bisturi, sem transferir o jardim das musas para a floresta nativa e o novo parque industrial, mas dando um shape funcional e aerodinâmico à língua portuguesa.
O pirata
numa cadillac azul
ele chispou entre duas metralhadoras
e um negrão de chapelão no guidão
Benfeitoria o cara nos fez, permitindo ao leitor entrar nas entrelinhas e completar os poréns. Até então era aquela overdose vocabular, obra e arte de bacharéis nefelibatas. O leitor, aplaudisse ou não, ficava de fora. Oswald então o convoca com suas elipses, derrisões que convidavam para a conversa, a interferência, a complementação. Não mais julgar o leitor como incapaz e dar tudo em excesso, mastigado. Mas provocar sinapses que excitam quem lê. A poesia é acolhedora, democrática, aceita qualquer interpretação. E Oswaldo abusava do mínimo múltiplo comum.
Amor
humor
Esse ideograma, pura elipse, um samba sincopado, emblema da moderna poesia brasileira. O que é você abrir um livro com esse poema em 1927 quando as aves agourentas de beletrismo ainda sobrevoavam a pista? Um livro chamado Primeiro caderno do alumno de poesia Oswald de Andrade com ilustrações quase infantis do autor.
Drummond, esse discreto incendiário, que 3 anos depois, abriria seu primeiro livro, Alguma poesia, com outra pedra de toque, “Poema das sete faces”, surge de repente nessas Poesias reunidas, comentando um outro poema de amor do autor: Cântico dos cânticos para flauta e violão. Ele sai de dentro de uma entrevista que Oswald dá ao crítico Mário da Silva Brito em 1943. O poeta canibal repete um comentário de Drummond a esse longo poema: ”Você restituiu à literatura brasileira, o poema de amor que você mesmo havia destruído”. Destruiu precisamente com “amor/humor”, o sumo do suco, o convite supremo para o leitor enveredar no poema, 15 anos antes, na fase heróica e guerreira do modernismo, modernismo que Drummond seria outro habilíssimo torpedeiro, a partir de 1930. Em 1942 na época do Cântico, o modernismo já instaurado, a guerra era outra, geopolítica, mundial. A II Grande Guerra assolava a Europa e deixava uma multidão de mortos e feridos. Oswald reúne o amor a sua mulher, Maria Antonieta d’Alkmin, à vitória russa ao cerco alemão a Stalingrado, às imagens delirantes de um homem apaixonado no campo de batalhas de um circo imaginário em chamas. Drummond foi na mosca. Quem destruiu o poema de amor com a magnificência resumida de um comprimido de duas palavras, só poderia reconstruí-lo com a potência imagética do Cântico dos cânticos:
Eu quero nunca te deixar
quero ficar
preso a seu amanhecer
Oswald fala em 54 que o Modernismo só poderia se dar em São Paulo pela sua mentalidade industrial. A economia cafeeira provia os recursos e a indústria, com sua ânsia de novidade, estimulava toda e qualquer inovação. O Rio, capital do país, também recebia esses novos ares, através da poesia de Drummond e Bandeira, os sambas de Noel Rosa, as festas de Tia Ciata e as visitas constantes de Oswald e Mário de Andrade. Mas a poderosa sombra oswaldiana se espalha pelo Rio mesmo na poesia dos anos 70 que devorou com todos os dentes o antropófago-mor e incorporou seu humor, sua pulsação. É só ler Chico Alvim, Leminski, Cacaso, Ana Cristina Cesar, que é fácil localizar o poeta paulista. O Nuvem Cigana, grupo emblemático da Poesia Marginal, acrescentou ainda o corpo, a voz e o carnaval em suas lendárias artimanhas, instigados pela ordem do dia da época, que exigia corpo vivo e presente, a expressão das novas sensações que eram vividas intensamente, dos happenings à arte ambiental, aos parangolés de Hélio Oiticica, à arte total dos concertos de rock and roll. E Oswaldo estava em contato direto com isso tudo, profeta antropofágico, visionário, da devoração ritual do outro, da transmutação do tabu em totem. “Ver com olhos livres”
Aprendi com meu filho de dez anos
que a poesia é a descoberta
das coisas que nunca vi.
Benfeitoria essa da Companhia sem dúvida. Mas sinto falta dos 2 ápices de sua ficção: Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande. Não vejo diferença entre seus poemas e essas prosas poéticas. São meu on the road caboclo, longos poemas em travelling, visualidade e humor demolidor. Foi seguindo essas pegadas que escrevi meu segundo livro, Preço da passagem, ainda no mimeógrafo, em 1972. A epopéia de um personagem, numa sequência de tiros curtos. Para um cérebro fragmentado pela grande viagem psicodélica, essa epopéia oswaldiana foi um guia no escuro policrômico rock and roll do fim dos 60, início dos 70.
Ditirambo
meu amor me ensinou a ser simples
como um sino de igreja
onde não há nem um sino
nem um lápis
nem uma sensualidade
Sincronicidade absoluta reler Oswald agora. O poeta de câmera na mão transfigurada em palavras. Com ele aprendi ritmo e corte. Esse mês lanço independente, old school, a obra completa (Hotel de Deus e Trem da noite) de Guilherme Mandaro, poeta, professor, editor e um fac símile do meu primeiro livro, Muito prazer, editado em mimeógrafo por Mandaro, em 71, marco inicial da poesia marginal. Engraçado com essas ondas magnéticas se atraem: Oswaldo e Poesia Marginal. Talvez porque Oswaldo tenha sido sempre o grande marginal da poesia brasileira, provocador, desaforado, não se submetendo a qualquer clube, panela, patota e pensando a poesia como utopia e cinema, nossa verdadeira identidade nacional, muito distante dos compêndios escolares. Os marginais de 70 só fizeram seguir sua trilha.
Adolescência
aquele amor
nem me fale