Beatty s.credito jul17

 

Após ter lido aqui e ali sobre o romance O vendido (Editora Todavia), do norte-americano Paul Beatty, me interessei pelo livro e por resenhá-lo. Armei mentalmente a estrutura da crítica baseado em duas resenhas, uma entrevista e o material de divulgação da editora. Seria assim: luta pelos direitos civis; guinada linguística nas ciências humanas e o fim dos grandes modelos explicativos; questionamento do cânone literário; politicamente correto; questões extra-literárias pressionando a produção artística e criando novos juízos de gosto; a importância da militância; o beco sem saída das lutas identitárias; a diferença entre falso e fictício. Para fechar, a tirada de algum humorista, como esta do Millôr: “Entre o riso e a lágrima há apenas o nariz”. E seria mais uma resenha rebaixando a literatura ao papel de documento histórico sem profundidade, que apenas atesta o que já sabemos, ou queremos provar.

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É possível afirmar que existe nos Estados Unidos uma tradição de romances de grande fôlego, essencialmente realistas, que têm como peça central personagens disfuncionais. Livros que criticam e escancaram o que corre por debaixo da história de um país vencedor, do último grande império mundial que conhecemos. Philip Roth é o exemplo mais bem acabado dessa produção literária realista da América Lado B (presente também em outras formas artísticas, como no cinema de Clint Eastwood).

O vendido poderia muito bem integrar esse grupo de grandes romances norte-americanos da segunda metade do século XX e início do XXI críticos da sociedade. Beatty tem fôlego narrativo, domínio da composição ágil de personagens, ambientes e contextualização histórica, e trata de vidas e temas que não se enquadram na história monumental do país. Mas o caso é que o livro não se encaixa nessa produção e é na forma do romance que podemos encontrar o porquê.

O uso preciso do humor, do nonsense, a mistura despudorada de referências da alta cultura com outras rebaixadas do mundo do entretenimento mais ligeiro e do mercado rompem o tecido realista da narrativa. Quando estamos confortavelmente instalados em cenas densas e envolventes, com longos parágrafos muito bem elaborados, esses ruídos nos levam ao limite da inverossimilhança, para em seguida sermos resgatados novamente pelo realismo. Beatty domina o jogo de conduzir o leitor nesse fio da navalha da elaboração literária.

Essa não adesão ao realismo puro pode ser entendida, salvo engano, como uma impossibilidade formal para tratar de um mundo disfuncional que (ainda?) não tem seu lugar assegurado na cultura americana. Explico. Toda cultura, até mesmo a mais vitoriosa, abre espaço e é forçada a aceitar a crítica e as passagens não muito gloriosas no seio de tantas celebrações. E esse é o caso da produção de Roth. Os personagens rothianos, que jamais irão se enquadrar no modelo de vida administrada daquele país, têm permissão para existir. Mesmo a história monumental de um país predestinado à vitória precisa aceitar e acolher, com boa ou má vontade, o seu Lado B (a União Soviética stalinista jamais entendeu essa lição e tentou controlar as narrativas alternativas na marra). Toda a explosão da contracultura norte-americana (beatniks, hippies, rock and roll, LSD, Route 66 etc), salvo raras exceções, terminou acolhida no corpo principal da história do país e, finalmente, transformada em bugigangas de mercado esvaziadas de seu volume contestador original.

Para nos falar sobre algo que não encontra seu lugar nem mesmo entre as vergonhas oficiais do país (escravidão, Jim Crow, Ku Klux Klan, segregação, para ficar apenas na questão dos negros), Beatty lança mão de uma forma narrativa não-convencional; no limite, não-realista. Ao questionar a “América pós-racial” e o resultado das conquistas do movimento negro desde a década de 1960, o autor coloca o dedo na ferida da própria formação da história oficial do país e seus aparatos monumentais e técnicos. As teorias freudianas absorvidas pela psicologia social que o pai do personagem principal testa no filho-cobaia falham reiteradamente naquele ambiente que escapa aos modelos pré-existentes; uma estrutura social não prevista pelos cientistas da Ivy League. A arquitetura monumental da capital Washington, inspirada nas glórias do Império Romano, é contrastada brutalmente com as descrições da ex-cidade, agora apenas parte do gueto, de Dickens, em Los Angeles.

O livro trata da inverossímil história de um negro que age de forma cética para segregar Dickens. Só a arte é capaz de nos fazer acreditar nessa narrativa e nos deixar de frente para uma realidade que ainda não cabe em uma explicação coerente. Grandes romancistas como Beatty têm o raro talento de sondar áreas da vida que não foram mapeadas. É disso que trata o romance O vendido. De uma América que (ainda) não existe porque ninguém conseguiu falar sobre ela. De uma América Lado C.


 

Tiago Ferro é editor da revista Peixe-elétrico