Claude Cahun L.Erber jun17

 

Após nove anos sem publicar inéditos, a poeta, artista visual e pesquisadora (Unirio) Laura Erber lança amanhã (20) seu livro mais recente de poemas, A retornada (Relicário Edições). O evento ocorre em Belo Horizonte, no Sesc Palladium (Rua Rio de Janeiro, 1.046, Centro), a partir das 18h30, com entrada gratuita. Abaixo, uma resenha escrita pelo pesquisador Gustavo Silveira Ribeiro (UFMG) sobre a obra. 

 

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Voltar a escrever – e, quem sabe, volt­ar a escrever poesia, em particular – equivale, no novo livro de Laura Erber , A retornada (Relicário Edições/2017), a voltar à vida, a retomar posse sobre si mesmo, o próprio corpo, suas funções e abismos.

A proximidade com a poesia parece tão essencial à autora que, desde o início do volume, interrogações sobre a natureza do poema e, principalmente, sobre a possibilidade de seu exercício e frequentação aparecem com muita insistência, instaurando no texto algo como um ambíguo regime de legibilidade: por um lado, a poesia parece ser de tal modo um elemento vital que a autora duvida das suas capacidades, colocando em questão a validade dos seus escritos (o coeficiente poético dos mesmos, poderíamos dizer): particular e talvez irrepetível, o gesto do poema é singular, quedando quase inacessível: a pergunta de Sylvia Plath posta como epígrafe geral do livro e referência central da sua primeira sessão – epígrafe colhida muito habilmente, como tantas vezes neste livro pleno de citações e outras vozes – sobre escrever poemas por contágio, como um tipo qualquer de ato involuntário, dá testemunho disso. Por outro lado, no entanto, o tateio e a dúvida em relação à poesia são indício também de uma energia imensa do texto poético, força em si mesma represada, de que é preciso se aproximar com cuidado e respeito, tamanha potência que ali se abriga: escrever por contágio, diz e repete a poeta americana, como se se tratasse de movimento contínuo ao da leitura demorada, da decifração amorosa de tantos textos; como se se tratasse, enfim, da força disseminadora do elemento poético, desse gesto textual incerto que onde toca produz efeito e transforma a paisagem, modificando a língua e o pensamento mesmo. Timidez e valentia se combinam e alternam aqui: a autora, retornada ao gênero poético, ao espaço do verso, à textualidade delicada da palavra que não se decide entre som e sentido, ora se retrai ante aos desafios da criação, ora se afirma neles e por eles, enfrentando a multiplicidade quase descontrolada de significados e possibilidades que a poesia tem, conforme vai expresso no segundo texto do livro. Não titulado, encimado apenas pela epígrafe de Heiner Müller, o poema apresenta inúmeras definições e atribuições para si mesmo, desvelando-se como um centro irradiador de diferentes e inusuais modos de existir e agir sobre o mundo:

(...) o poema incendeia, reconsidera, desiste. Nem a espiral de um ponto de vista ardentemente perseguido nem grãos de luz sem destino. (...) os poemas são sapatos. As imagens emborcam. Os poemas são ardências, são porradas. Imagens não perdoam, o poema trespassa. (p. 11)

Dentre todas essas possibilidades, a força e a fraqueza, a assertividade e a dúvida. O poema (a poesia, mais amplamente) é tarefa imensa e virtualmente infinita, tão intrincada quanto a própria vida. E não é sem razão que seja justamente o poema, essa forma ao mesmo tempo maleável e rigorosa, seja escolhida para narrar (para apresentar, expor, refazer, dar corpo) a um fantasma, voz que fala de dentro da morte, a uma retornante, enfim, que, entre os fios e máquinas vitais, mas inóspitas, do hospital, vai voltando ao mundo dos vivos, ainda que marcada indelevelmente pelo trauma, pela memória de uma ausência, pelo apagamento temporário que divide a vida futura em dois. No longo e belo poema final do livro, chamado também “A retornada” – e que está encrustado numa seção que tem como epígrafe uma frase da fotógrafa francesa Alix Cléo Roubaud, ela própria uma espécie de figura fantasmática, talvez mesmo triplamente espectral: pelas imagens belíssimas, mas perturbadoras, que produziu, nas quais rostos e corpos parecem ir lentamente desaparecendo, perdendo os contornos; pela sua morte precoce, um desaparecimento trágico sentido fundamente na cena da cultura audiovisual europeia; e ainda pela personagem dolorosa em que ela se transforma nos versos cheios de luto de Quelque chose noir, livro escrito por seu marido, o poeta Jacques Roubaud – uma mulher lentamente recupera a consciência e os movimentos, saindo de um estado de letargia e mergulhando confusamente no dia a dia movimentado que conforma a existência comum.

A sua voz, “última tentação da matéria neste mundo” (p. 46) se rearticula – e essa é uma metáfora central para o projeto de livro que temos diante dos olhos: às vezes balbuciante, às vezes afirmativa, a voz, o conjunto de sons se forma do mesmo modo que os versos, as estrofes, as inquietações formais presentes no livro. Entrecortada, plena de recordações que se articulam com visões rápidas do presente, a voz do eu-lírico é atravessada pelo desejo de reinserção no mundo, assim como parece gaguejante, incerta, consciente da precariedade, naquele contexto, de seus movimentos e sentidos. Num tempo como o nosso, no qual as fraturas da modernidade implicam, na cena literária, no esvaziamento da questão dos gêneros e na impossibilidade de definições incontestes acerca do que é a poesia, a consciência da instabilidade das suas formas – bem como a enorme liberdade de experimentação daí derivada – parecem ser as únicas maneiras de expressar integralmente, em todas as suas nuances, o aspecto dramático que têm a escrita do poema, esse texto-devir que segura seu “nome vazio na ponta dos lábios” (p. 45).

Lido em chave simbólica, a fala suspensa, a lógica do delírio que tendem a presidir a composição de A retornada oferecem portas de entrada para a compreensão do que seria, se nos é permitida a expressão, o método criativo preferencial de todo o livro.

Em primeiro lugar, o caráter fragmentário dos poemas: muitos deles têm a estrutura interrompida, o modo de pequenos blocos de sentido que, mesmo existindo separados e podendo ser entendidos assim, como peças individuais, convidam à montagem e ao encaixe para que algo do seu significado mais amplo possa emergir. Para tornar essa questão mais clara, que sirva de exemplo a organização interna do livro, seu desenho mesmo: são três partes distintas – cada uma delas apontando de maneira diferente para a questão da volta e da retomada – que, lidas em separado, se revelam em perspectiva menor, em temáticas particulares como a escrita e a intertextualidade, a viagem e a experiência de quase-morte, mas que se compreendidas em conjunto, numa sequência orgânica, soam como formas diferentes e complementares de lidar com a ideia do retorno (a volta ao território do poema em “Espécies de contágio”; o deslocamento no espaço e no tempo, as voltas circulares da memória e dos corpos em trânsito em “O céu de Vesterbro”; o sujeito que desperta e se recupera no poema “A retornada”), o motivo central do volume. Em segundo lugar, a forma conscientemente indecisa entre a prosa e o verso, entre a ‘consagração do instante’ (para dizer com Octavio Paz) dos flashes líricos que marcam alguns poemas, e a elaboração de uma cena e de uma atmosfera específicas, evocadas em poemas narrativos ou próximos do ensaio, que se alongam em torno de uma questão de modo às vezes quase descritivo ou analítico.

Em terceiro, por fim, está a questão da deriva da escrita: para além de uma discursividade fácil e linear, a elaboração do poema se dá, em A retornada, a partir sempre do curto-circuito e da inquietação, marcas da relação tensa que a autora mantém com a linguagem e os modos tradicionais de construção do poema. O estranhamento talvez seja a estratégia privilegiada aqui: tanto no plano da fatura dos textos, que experimentam várias possibilidades expressivas, vários ajustes formais – que vão do verso de corte curto, rápido (o poema em onze partes “Mapas com greolandêses bêbados”, a pequena série “Anarquia do fantasma”, por exemplo), aos volteios da prosa descontínua e algo reflexiva (como em quase toda a seção “Espécies de contágio”) – quanto no plano dos afetos e das percepções, no qual um sujeito, a voz que nos fala no poema, não mais reconhece a si mesmo. “Algo me pertencia e foi varrido com o lixo tóxico do hospital naquele quarto vazio alguém eu mesma minha carne continua esperando que eu retorne nas cenas finais” (p. 48): o estranhar a si que marca seu olhar é imagem perfeita, acreditamos, da estrutura profunda do livro, dos seus elementos mais visíveis até os detalhes e questões mais recônditas – o descompasso entre a expectativa anterior e o estado presente, a consciência dolorosa de que alguma coisa, talvez, se perdeu irremediavelmente, descreve o corpo complexo dos poemas, que sabem não pertencer de modo claro a nenhuma dicção tradicional, reconhecível de imediato (e os diálogos textuais constantes em boa parte dos poemas, expressos nas muitas epígrafes e referências que atravessam, tantas vezes secretamente, como num “jogo da citação” [p. 33], os poemas, talvez queiram dar conta disso, da falta de lugar, do pertencimento estranho de textos experimentais), além de servir como mote, repetimos, para pensar a questão da viagem e do inexplicável da morte entrevista de perto, mas nunca de fato assimilável. A dificuldade de expressão da experiência traumática (“é tão perigoso falar do que desata?” [p. 49]) não diz apenas dos limites da linguagem diante do indizível, mas expõe também a instabilidade inerente ao próprio gênero e ao próprio gesto da poesia, incerto e informe.

Desde o início, literatura e vida estão imbricados em A retornada. E há mais do que refrações biográficas ou autobiográficas implicadas nessa relação. Há como uma zona de continuidade entre ambas as esferas, talvez uma solidariedade que se abra com a força de uma metáfora entre elas. Não são apenas as leituras ou a memória visual de cores e imagens marcantes que se insinuam nos versos, assim como não são apenas os lances da vida familiar, a lembrança dos filhos, as angústias e os projetos da escritora que, bem ou mal, informam muitos dos poemas, dando a eles tanto um lastro vivencial quanto um estofo ficcional, na medida em que tanto o registro cifrado dos acontecimentos concretos quanto a imaginação e o desejo que se fazem aventura da linguagem são faces de uma mesma moeda no processo da criação.

O que observamos em A retornada, entretanto, é de outra ordem: a relação entre escrita e vida se dá a partir de um lance ao mesmo tempo estético e político, formal e existencial, por assim dizer. Se a própria vida, o correr desregrado dos dias e a sucessão de acontecimentos que lhe dão corpo, não possui um padrão preciso e rigoroso, sendo antes incapturável, em permanente devir e aberta tanto a exploração rigorosa quanto à experimentação mais corajosa e incerta sobre os seus resultados, assim também é a poesia deste livro de Laura Erber: tanto uma quanto outra podem ser pensadas a partir do informe, daquilo que não se fecha sobre si mesmo confirmando a própria identidade ou repetindo um modelo preconcebido. Elemento atravessado por múltiplas injunções e diante de inúmeras possibilidades, o informe – não sendo simplesmente ausência de forma fixa, mas antes existindo como risco e abertura à diferença – pode caracterizar a vida como a arte, e nesse caso preciso a ars poetica posta a prova e em circulação pela autora, na medida em que o dado experimental de sua fatura, o estranhamento e o desafio que marca tantos poemas do livro aponta justamente para o informe, para a busca contínua pela palavra justa, pela metáfora que desconcerta. Assim como a visão da poesia que aqui se desenha é experimental e não-confortável (logo pensante e política, pelos deslocamentos que é capaz de produzir), a imagem da vida que em A retornada emerge é igualmente incerteza e dúvida, naquilo que esses termos têm de mais interessante: convite ao novo e recusa das saídas imediatas, elogio da viagem e luta contra as formas enrijecidas do hábito.

A vida se confunde, nessa poesia de certo modo também tão cerebral (tão pouco dada ao confessionalismo), com o coração, esse “pequeno músculo estúpido lutando contra o tempo” (p. 19), que resiste ao descompasso e à falência, continuando incerto e informe o seu trabalho noturno de irrigação e revolta.