À margem do rio, um homem espera. Quase pode ouvir os canhonaços que anunciam o barco trazendo notícias da coroa, ou, pelo menos, uma carta de Marta. Mas não. Do velho píer, tudo o que ele avista no leito do rio é o cadáver de um macaco morto, não de todo decomposto, flutuando no remoinho em um tedioso vaivém. “A água queria levá-lo e o levava, mas enredou-o entre as estacas do píer decrépito e ali estava ele, de partida e não, e ali estávamos. Ali estávamos, de partida e não.”
Eis a imagem-síntese de Zama, lendário romance do argentino Antonio Di Benedetto: um corpo estagnado em um presente perpétuo à espera de algo. Mas de quê? Uma espera ontológica.
1790
O império de Carlos IV já experimenta alguma decadência, mas o Vice-Reino do Rio da Prata ainda levará quase 20 anos para ruir. Segundo a nova política de intendências da colônia, no entanto, só os nascidos na Espanha podem ocupar os melhores postos hierárquicos, e é por isso que Dom Diego de Zama, outrora nobre corregedor da coroa, é rebaixado a assessor letrado do governador do Paraguai: Zama é um criollo nascido na América. Sua única esperança de ascensão social é ser transferido a Buenos Ayres ou outro centro importante do Vice-Reino e, de lá, à capital espanhola. Enquanto isso, terá de passar seus dias vagarosos longe da família e de qualquer prestígio, afundando-se gradualmente em um pântano de degradação física, afetiva e moral.
Um dos romances paradigmáticos do século XX sobre a espera, Zama está dividido em 50 capítulos, separados em três fases: 1790, 1794 e 1799. Acompanhamos, então, uma década na vida deste anti-herói errático e vulnerável, que fracassa tanto em seus infrutíferos trâmites profissionais quanto nas aventuras libidinosas a que se lança. E são muitas. Sempre com mulheres brancas e espanholas, porque não lhe apetecem as índias e negras. Zama é um personagem ambíguo em uma complexa crise identitária: latino-americano pacificador de índios, serve e admira a Europa, e não é de estranhar sua rivalidade com Ventura Prieto, espanhol pró-americano reivindicador da luta pelos direitos dos americanos nativos.
“Zama trabalha a partir de duas grandes ficções femininas: a mulher e a América. Na época da conquista, os espanhóis — e também os portugueses — se apropriaram dos corpos das mulheres — do corpo feminino da América — e muitos criollos nasceram fruto de violações. Zama propõe uma inversão da conquista. É um americano que tem um filho com uma espanhola, como se a América conquistasse a Europa através do ventre e da paixão, não pela terra e pela posse. Mas esse filho mestiço, como o do conquistador, também será filho da miséria e do abandono”, nota a crítica literária Silvia Hopenhayn, que recentemente ministrou um instigante curso sobre o livro no Malba (Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires), e cuja leitura orientou muitas das ideias desse texto.
Entre as tantas alegorias do romance, pode-se pensar em Zama como um emblema da condição insular e marginal do sujeito colonial, a periferia à mercê de um grande centro — posição que, de certo modo, até hoje a América Latina ocupa geopoliticamente. Quanto menos poder se tem, mais se espera. “Eu, em meio a toda a terra de um continente, que me resultava invisível, embora o sentisse em torno, como um paraíso desolado e excessivamente imenso para as minhas pernas. A América não existia para ninguém, a não ser para mim; mas não existia senão em minhas necessidades, em meus desejos e temores”, diz o personagem em seu lírico solilóquio. “É uma América personalíssima, quase tátil. Não uma América territorial, nem histórica, mas existencial. Zama seria um estrangeiro em sua América, o americano estrangeiro da América”, diz Hopenhayn, comparando-o ao Mersault de Camus.
1956
O existencialismo está em voga na literatura europeia, mas neste ano um argentino de Mendoza concebe um romance absolutamente original e resistente a qualquer taxonomia. O escritor Juan Jose Saer, mais célebre entusiasta da obra dibenedettiana, afirma que sua sobriedade estilística parece surgida “do nada”, “sem precursores nem epígonos”.
É claro que há ecos da escola filosófica de Camus e Sartre, mas também reverbera o realismo psicológico de Dostoiévski, o absurdo kafkiano e becketiano, a subjetivização do entorno de Faulkner, o fantástico argentino do grupo Sur — de Borges, Bioy Casares e Silvina Ocampo. Há ainda uma construção de personagem que lembra Pedro Páramo, de Juan Rulfo, com uma musicalidade à Guimarães Rosa, para citar alguns de seus contemporâneos latinos. O que resulta de todas estas influências, entretanto, é tão moderno que carece de compreensão em 1956.
Antonio Di Benedetto tem 35 anos e é subdiretor do jornal mendocino Los Andes, em que também escreve sobre livros e filmes. Para se dedicar à escrita de Zama, seu primeiro romance, pede uma licença do jornal e se interna em um quarto vazio em Córdoba por cerca de 20 dias. De volta à redação, leva outros 10 para concluí-lo. A história de um corregedor do século XVIII, de nome Zamalloa, e as crônicas de Félix de Azara, primeiro naturalista rio-platense, teriam sido possíveis pré-textos da obra, escrita em uma espécie de transe.
Embora ambientada em um tempo específico e longínquo, seria incorreto classificá-la de romance histórico. Para Saer, aliás, Zama é a refutação deliberada do gênero. “Há, ao contrário, paródia, e no sentido nobre do termo, que se opõe mais lucidamente ao de burla ou pastiche ou imitação”, afirma, no prefácio da edição brasileira, editada em 2006 pela Globo. Di Benedetto se dedica a emular o espanhol clássico do século de ouro, uma língua defasada, para produzir um efeito arcaico. A escrita é densa e com frases arrastadas na primeira parte, mas se torna progressivamente lacônica até adquirir um registro quase telegráfico: “Veio barco”, diz o capítulo 17. “O sol estava manso. Eu também”, escreve mais adiante.
“Como Cervantes, que parodia as histórias de cavalaria para inventar o romance moderno no século XVII, como Macedonio Fernández, que dialoga com Don Segundo Sombra de Ricardo Güiraldes e a tradição gauchesca para escrever seu Museu do Romance da Eterna, inaugurando a literatura moderna do século XX na argentina, Zama se desprende do romance histórico e de uma certa leitura da América como território exótico para a Europa”, analisa Hopenhayn.
Mais do que apontar uma gramática própria, ela fala em “topografia do texto”, com sua prosa acidentada, caudalosa, por vezes frondosa, árida. É uma escrita extremamente visual, mas trata-se de uma imagem acústica, de ir vendo com a palavra.”O sol era um cachorro de língua quente e seca que me lambia”, diz um trecho. Outro: “Descolei as pálpebras tão pausadamente como se elaborasse a alvorada” — a tradução é de Maria Paula Gurgel Ribeiro.
“Em Zama, a esperança é defraudada, o desejo não é consumado, a solidão não é compensada e a morte é anti-épica. Zama fracassa, mas em sua derrota, triunfa como sujeito da angústia, como anti-herói.”, escreve o doutor em Letras e pesquisador do Conicet Rafael Arce em El ejercicio de la espera: para una lectura de lo grotesco en Zama. Para Hopenhayn, Zama é o périplo de um personagem que não chega a lugar algum. “É como se Di Benedetto se adiantasse ao mal-estar da cultura atual, narrando em 1956 uma história sobre o germe da insatisfação”.
Só o fracasso salva Zama de sua espera infinita.
Vinte anos após a publicação, Di Benedetto é vítima não da espera, a quem o livro é dedicado, mas do terrorismo de estado argentino. Em 24 de março de 1976, torna-se o primeiro escritor sequestrado pela ditadura cívico-militar de seu país, por motivos jamais explicados. Recluso por um ano e meio, é brutalmente torturado, sofrendo simulações de fuzilamento e outros traumas psicológicos, como ficar cego ao ter seus óculos destruídos. Graças à intervenção do Nobel de literatura alemão Heinrich Böll — não a de Borges, nem de Sábato —, é liberado e parte direto ao exílio na Espanha. “El Dibe”, como o chamavam na redação, volta à Argentina anos antes de morrer, nunca mais à sua Mendoza. Na casa onde vivia, há hoje uma concessionária de automóveis. Di Benedetto nunca teve um. Eis um paradoxo tipicamente dibenedettiano.
2017
Em janeiro, o Nobel de literatura J. M. Coetzee publica na The New York Review of Books uma longa e elogiosa resenha sobre Zama, intitulada Um grande autor que devermos conhecer. O texto sai por ocasião do lançamento do romance em inglês no ano passado, com sessenta anos de atraso. Ainda que Zama esteja traduzido ao alemão, francês, italiano e polonês, pela lógica do mercado editorial é preciso ser publicado em inglês para alcançar status internacional — processo de colonização linguística que, ironicamente, remete a uma das metáforas do próprio livro.
Dias depois, o romance também ganha espaço privilegiado na The New Yorker, no artigo Uma negligenciada obra-prima sul-americana. O crítico reflete que a chegada tardia de Zama nos EUA levanta uma questão “reconhecidamente hiperbólica”: “Será que o Grande Romance Americano foi escrito por um argentino?”
Em 2017, o livro parece deixar definitivamente seu lugar periférico na literatura latino-americana para viver uma retomada promissora, aquecida por novas leituras, publicações, debates e, agora em junho, sua tão aguardada adaptação cinematográfica por Lucrecia Martel.
O projeto nasceu da impossibilidade da diretora filmar seu longa anterior, El Eternauta, por divergências com a produção. Para aplacar a sensação de vazio, empreende um desafio ainda maior: no verão de 2010, decide subir o Rio Paraná de barco, de Buenos Aires até Assunção, no Paraguai. “Foi uma viagem demencial. O rio estava especialmente cheio, levamos 15 dias para chegar até Corrientes, enfrentamos tormentas e mosquitos em um barquinho pequeno que amanhecia repleto de insetos mortos. Tínhamos uma hora e meia de felicidade por dia, todo o resto era uma angústia sem fim”, lembra. Foi nessas circunstâncias que leu Zama, e ao terminar experimentou uma inexplicável euforia. “Filmei Zama para tentar entender este sentimento e me reconciliar com a frustração de não ter filmado El Eternauta. Zama nasce desse fracasso, e o fracasso é uma das melhores coisas que podem nos acontecer, porque gera espaço para algo novo surgir”, reflete.
Foram sete anos de gestação, os cinco primeiros buscando financiamento para o longa. A pesquisa também foi exaustiva, já que desde o início Martel sabia que teria de criar uma nova língua. “Procurei amalgamar várias formas de falar e investiguei algo que me intriga, que é o conceito do espanhol ‘neutro’ televisivo. Não é só uma estratégia comercial para vender telenovelas aos países vizinhos, mas uma invenção linguística. Os sotaques são o que há de mais rico nos territórios. É aterrorizante o que ocorre no cinema, mas para se filmar com grandes orçamentos você é praticamente obrigado a filmar em inglês. Me interessava refletir sobre isso, como ser colônia e resistir a continuar sendo”, disse a diretora durante a Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, em maio de 2017.
Outro lançamento aguardado para este ano é El mono en el remolino (“O macaco no redemoinho”), diário de filmagens de Zama escrito pela ficcionista Selva Almada (de O vento que arrasa, publicado no Brasil em 2014 pela Cosac Naify). “O livro é um híbrido estranho. Prefiro chamá-lo — e este será seu subtítulo — de notas de filmagens. É uma série de textos breves, muito líricos, impressões minhas sobre os lugares onde o filme foi rodado e algumas das pessoas que participaram dele”, diz a autora, que frequentou o set de Martel. Para ela, Zama tem um dos mais belos inícios da literatura argentina, e a imagem que dá título a seu livro — editado neste segundo semestre pela Random House — contém o espírito do romance de Di Benedetto. “Lucrecia dedicou anos a fazer o filme, eu dediquei muita energia a escrever este livro tão curto, é como se o remoinho Zama puxasse tudo ao seu redor, como se estivéssemos sempre entre ir e não. Parece-me uma metáfora linda e triste da existência humana”, opina.
Com quatro obras publicadas no Brasil — o volume de contos Mundo Animal e a chamada “trilogia da espera”, composta por Zama, O silencieiro e Os suicidas —, Antonio Di Benedetto é praticamente um desconhecido entre os leitores brasileiros, que ainda lhe devem uma leitura mais aprofundada. Seis décadas depois, parece que é chegada a hora dessa longa espera ter um fim.