Bolaño materia.março.2017

 

I am a motherfuckin Starboy
The Weeknd

Um poeta pode suportar tudo. O que equivale a dizer que um homem pode suportar tudo. Enrique Martín era homem, poeta e também chileno morando (ou talvez exilado) em Barcelona. Atuava como colaborador da revista Preguntas & respuestas, jornal barato que se dedicava a cobrir óvnis, fantasmas, aparições marianas, cultos pré-colombianos e outras aparições paranormais, que num relance de liberdade poderíamos etiquetar como ficção científica (ou sci-fi, como E.M. preferia escrever). Por um tempo, enviou ao conterrâneo Arturo Belano (esse, sim, sabemos um exilado) estranhos cartões-postais com numerações misteriosas, que poderiam ser lidas como código de conversa entre o remetente e algum, quem sabe, E.T. (se você não compreende, coloque a culpa em algo fora da órbita do banal, mas repasse a culpa, repasse a incompreensão).

E.M. foi encontrado morto em seu quarto com as paredes todas rabiscadas por equações (659983 + 779511 - 336933, coisas assim, inexplicáveis). Pouco antes, havia participado de um congresso de escritores de ficção científica em Madri e deixado sob a guarda de Belano uma caixa cheia de escritos, que passou dois anos fechadas, mas que no lugar de qualquer revelação sobre sua morte trazia apenas poemas. Maus poemas.

É possível dizer que E.M. vivia como exilado em Barcelona porque nascera no mesmo ano de Belano, 1953. Fazia parte de uma geração que contava com 20, 20 e poucos anos, quando do 11 de setembro chileno. Uma geração que da violência, da verdadeira violência, não poderia escapar. Arturo Belano é alter ego de Roberto Bolaño, também nascido em 1953 e exilado primeiro no México e depois na Espanha. Pela vida inteira, pela obra inteira, Bolaño se colocou como fugitivo dessa violência, dessa verdadeira violência, e do barulhento silêncio que acompanhava o toque de recolher a cair sobre as ruas de Santiago após 1973. A história de E.M. é relatada em Enrique Martín, um dos contos de Chamadas telefônicas, lançado originalmente em 1997.

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Planet Earth is blue and there’s nothing I can do
David Bowie

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Lembrei Enrique Martín, a tristeza de Enrique Martín, as colaborações que ele escrevera para seu jornal especializado em sobrenatural, nas numerações misteriosas enviadas a Belano, nas numerações na parede quando do seu suicídio, das suas tentativas de fazer contato, durante a leitura de O espírito da ficção científica, recém-lançado romance póstumo de Bolaño, escrito em meados dos anos 1980. Um dos primeiros exemplares terminados da sua produção alucinante e obsessiva, que corresponde da década de 1980 até sua morte, em 2003. Aqui, a ficção científica do título é justamente isso: espírito, mas não no sentido de essência, de constituição, mas de assombração. Talvez a assombração de E.M. Não se trata de livro de sci-fi na tradição norte-americana de um Philip K. Dick, e, sim, da possibilidade de contato, do fantasma do contato – e a possibilidade de contato talvez seja uma das facetas da ficção científica, gênero dependente da falsa ilusão que é possível quebrar o realismo com aliens assassinos e naves coloridas a cortar o céu. Mas não é possível pensar fora do universo. Não é possível pensar fora de casa, como Juan Rulfo um dia decretou ao começar o romance mais importante da literatura de língua espanhola moderna, Pedro Páramo, como inevitável retorno para casa. Para o pai.

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O que podemos imaginar sempre existe, em outra escala, em outro tempo, nítido e distante, como num sonho
Ricardo Piglia

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O espírito... consiste numa sequência de desventuras de jovens escritores latino-americanos perdidos na América Latina. Um deles é fascinado pelos grandes mestres da ficção científica norte-americana e passa o dia lhes escrevendo uma vã correspondência. Nas mensagens, faz referência a um Comitê Norte-Americano de Ficção Científica Pró-Flagelados do Terceiro Mundo. Penso nessas cartas como pedidos de socorro, SOS, como tentativas de contato. Como a numeração que E.M. um dia espalhou, sem jamais ter conseguido ele próprio escrever qualquer romance de ficção científica, deixando como legado apenas poemas. Repito: maus poemas.

A tentativa de fazer contato é a marca mais forte das grandes obras deixadas por Roberto Bolaño. Cesárea Tinajero, musa-mãe dos jovens poetas mexicanos, desaparecida desde a década de 1920, é sua personagem célebre e espécie de sustentação do romance que o consagrou, Detetives selvagens (1998). O possível reencontro com essa figura mítica salvaria da desolação todos os poetas do underground mexicano dos anos 1970, do qual Bolaño fez parte no período em que escreveu o Manifesto do Infrarrealismo (que em Detetives... recebeu o nome de “realismo visceral”). A personagem de Cesárea faz pensar numa ligação do Infrarrarealismo/realismo visceral com o grupo Estridentista, que fundou a vanguarda mexicana, tendo como lideranças os nomes de Maples Arce, Germán Arzubide e Arqueles Vela. Esses autores pregavam uma renovação poética ao lado de um conteúdo social. Ou seja: era um grupo formado por escritores crentes na relação entre vida e arte, perspectiva presente no Manifesto Infrarrealista e em toda obra posterior de Bolaño.  

2666, outro romance póstumo de Bolaño, parte também da tentativa de fazer contato com um escritor, o alemão Benno von Archimboldi. O seu primeiro parágrafo é o relato de um germe prestes a alastrar sua praga: “A primeira vez que Jean-Claude Pelletier leu Benno von Archimboldi foi no Natal de 1980, em Paris, onde fazia estudos universitários de literatura alemã, aos dezenove anos de idade. O livro era D’Arsonval. O jovem Pelletier então ignorava que esse era parte de uma trilogia (formada por O jardim, de tema inglês, A máscara de couro, de tema polonês, assim como D’Arsonval era, evidentemente, de tema francês), mas essa ignorância ou esse vazio ou esse desleixo bibliográfico, que só podia ser atribuído à sua extrema juventude, não subtraiu em nada o deslumbramento e a admiração que o romance lhe causou”. Deslumbramento e admiração, palavras que aqui merecem ser frisadas.

Detetives selvagens e 2666 são dilatações de uma busca que Bolaño parece ter tomado como mote para sua produção a partir de Estrela distante (1996), primeira obra-prima da sua carreira. Estrela distante cobre os momentos que antecedem o golpe de Pinochet e percorre as décadas seguintes, com as lembranças e as derrapagens dessas lembranças. O escritor desaparecido é Alberto Ruiz-Tagle ou talvez Carlos Wieder (duplo, em alemão), um homem que, assim como Cesárea Tinajero e Benno von Archimboldi, se tornou célebre por sua meta bem-sucedida em tornar-se invisível. E talvez a busca pelo invisível diga muito sobre o que um dia o autor acreditou ser o “espírito” da ficção científica.

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“– Quer dizer que você sonhou com a Thea von Harbou…

– Sim, era uma moça loura.

– Mas você algum dia viu uma foto dela?

– Não.

– Como soube que era a Thea von Harbou

– Não sei, adivinhei. Era como a Marlene Dietrich cantando A resposta está no vento do Bob Dylan, sabe? Uma coisa estranha, aterrorizante, mas muito próxima, não sei como, mas próxima.”

Roberto Bolaño, em O espírito da ficção científica.

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Talvez a melhor chave de leitura para O espírito da ficção científica não seja pensar nele como um romance. Mas como um arquivo, um arquivo onde Bolaño parece ter inserido todas as ideias que um dia atravessariam suas grandes obras: a vida de jovens escritores, o fascínio pelos grandes mestres, a crítica aos grandes mestres, a busca pelo invisível como sintoma de uma geração e a sombra de “uma coisa estranha, aterrorizante, mas muito próxima”.

Acredito que o lançamento de O espírito da ficção científica seja crucial nesse momento de ascensão da direita em que obras distópicas da ficção científica do século XX estejam sendo redescobertas como alegorias/prenúncios dos dias que correm. Bolaño foi engenhoso ao subverter as leituras das grandes distopias de língua inglesa. No lugar de escrever ficção científica com enredos aterrorizantes, coloca-os em histórias lidas por seus personagens, em pesadelos que os perseguem e nas miragens que costumam acometer todos aqueles que buscam em algum momento fazer contato com algo ou alguém. Conta essas histórias como se elas fossem uma espécie de cenário oco, você tem a porta e nada por dentro. Um lugar de visitação, mas não de convívio. Não se habita um sonho, não se habita uma memória, não se conversa com o invisível, ainda que essas ações nos persigam o tempo inteiro. É insuportável viver sob o signo de um sintoma e sobre isso Bolaño escreveu a vida inteira.

O espírito dessa ficção científica me faz lembrar a epígrafe que o autor usou no seu livro Amberes (de 2002, ainda inédito no Brasil), citando uma frase de David O. Selznick: “La vida concluye en el momento en que se la fotografía. Es casi un símbolo de Hollywood. Tara no tenía habitaciones en su interior. Era sólo una fachada”.

É como se o melhor da ficção científica latino-americana (e quando falamos latino-americana aqui destacamos o histórico comum e recente de ditaduras que é quase sinônimo dessa expressão) fosse não um alumbramento do que poderia ser o futuro, mas uma fuga do passado que resulta em maus sonhos durante a noite (a violência, a verdadeira violência, da qual não se escapa nem mesmo dormindo). Era assim que Bolaño via estrelas.