Numa de suas narrativas mais famosas, Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, Jorge Luís Borges começa discorrendo sobre um verbete que escutara falar. Mas que jamais encontra, por mais que pesquise, o texto original. Trata-se do verbete sobre o país Uqbar, que, segundo Bioy Casares, ficaria em meio ao Iraque e a Ásia Menor. “Conjecturei que aquele país não documentado e o heresiarca anônimo eram uma ficção improvisada pela modéstia de Bioy para justificar uma frase”, escreve Borges.
O verbete relatando os pormenores de Uqbar acaba sendo lido e relido em sua ausência.
Uqbar, universo de ficção que lemos pela dúvida. Uqbar, território-algo, extensão a ser preenchida. É justamente essa prerrogativa borgiana da dúvida, do que há para se completar, da leitura que se faz na ausência, que Luci Collin parece dissertar no título da sua nova coleção de poemas, formado pela provocativa expressão A palavra algo (Iluminuras). Um “algo” que é tanto prerrogativa da falta como “coisificação” da palavra.
“Em suas raízes indoeuropeias (me encanta considerar o longínquo e ancestral desse movimento até aqui) ‘algo’ vem de al (outro) e kwo (quem, que) – uma combinação tocante. A palavra ‘coisa não determinada’ (lat. aliquod) afirma sua condição de pronome indefinido neutro que significa ou referencia o que não se pode/não se quer nomear (o que não se precisa nomear). Gosto de pensar em ‘algo’ como o que prescinde mesmo da nomeação, como o poético, que deliberadamente escapa ao domínio da comunicação imediata e – convidando-nos a espaços muito independentes – potencializa a liberdade. E quanto a objetificar a palavra e torná-la utensílio, a interrogação embutida seria ‘Por que não?’ Mas é o utensilio tomado delicadamente em seu esplendor, quando a objetificação é mais do que isso: é presentificação, exposição, é o estar ali e pulsar. A palavra evidente, ativa, potente e livre e que pode, sim, reverberar”, comentou a autora ao Pernambuco.
É dessa perspectiva da palavra potente no seu “a-completar”, que Luci faz de A palavra algo um belo livro sobre a irradiação do discurso poético, um discurso talvez o mais movediço/ o mais plástico. Uma obra que busca enquadrar o que é escrever enquanto se está escrevendo, o antes da palavra chegar e se posicionar na frase, o momento em que a próxima palavra ainda é só algo. O poeta finge/ e enquanto isso/ cigarras estouram/ pontes caem/ azaleias claudicam/ édipos ressonam/ vacinas vencem/ a bolsa quebra e/ o poeta finge/ e enquanto isso /vagalhões explodem/ o pão adoece/ astros desviam-se – disserta e lista no poema Deveras, um dos textos-manifesto da obra.
“Escrever sobre escrever é natural, é processo genuíno e relevante: se descobre que estamos ligados ao encantamento pela palavra; se pergunta sobre um algo primordial e indispensável – trazendo esse algo para a linha de frente, expondo-o, respirando, em vísceras”, define Luci sobre o que motiva sua escrita sobre a escrita em processo. Uma escrita que se aproxima do caos, que olha para o abismo e sabe da vertigem que isso provoca. Mas que ainda assim não arreda o pé. E talvez seja essa tensão o fato estético.