Depois de libertar os israelitas da escravidão no Egito, Moisés partiu com seu povo pelo deserto numa caminhada que durou 40 anos. Quando chegaram ao fim daquele mundaréu de areia, o Mar Vermelho lhes aguardava. Precisavam superar a água, mas não tinham embarcações para tal. Então, apostando na fé, o barbudão ergueu seu cajado e pediu pela intervenção divina. As águas, então, magicamente se dividiram abrindo caminho para que o êxodo seguisse adiante.
Em Aquarius, filme de Kleber Mendonça Filho, Sônia Braga interpreta Clara, mãe que mora há boa parte de sua vida em um apartamento no Recife. Gente de uma construtora, no entanto, quer erguer um novo prédio no mesmo lugar e consegue comprar todas as unidades de onde Clara ainda vive, exceto a dela, que passa a sofrer assédio e ameaças para que mude de ideia. Onde já se viu atrapalhar dessa forma o “desenvolvimento”?
“Tou sentada aqui em contagem regressiva em mais uma madrugada de deserto, única moradora de um prédio que logo em breve será ruínas”, escreve Laura em uma carta que jamais será enviada para a sua mãe. Sim, antes da especulação imobiliária condenar as famílias do Edifício Aquarius, os tentáculos da ganância desenfreada também atingiram Laura, a protagonista de Julho é um bom mês para morrer. Garota resistente, no entanto, nega-se a deixar aquele canto de João Pessoa. É a única moradora que permanece ali – se recusa a sair e até mesmo a negociar com a empreiteira que quer colocar tudo abaixo. Precisa de pouco dinheiro para comprar o que lhe é essencial: miojo, cigarro e latinhas de cerveja provavelmente vagabunda, além de pagar as contas de luz e da internet. É isolada no velho espigão em que escreve a carta-nunca-enviada-romance que compõe o livro de Roberto Menezes, publicado em junho de 2015 pela Patuá.
Não conhece o cara? Apresento. Roberto Menezes: nasceu em 1978, paraibano, professor e pesquisador de Física na Universidade Federal da Paraíba, algo que lhe dá uma grande vantagem, se comparado a alguns outros escritores do país: tendo uma fonte de renda que lhe sustenta fora da literatura, não precisa publicar algo de dois em dois anos para se manter no circuito de eventos literários – ou seja, seus textos podem maturar e nascem sem a pressão das contas a pagar.
Passa o dia imerso em cálculos, mas também arruma tempo para se dedicar à paixão pelas letras. Nascido em uma família pobre, lia tudo o que caia em suas mãos. Já na faculdade, a literatura passou a ser seu maior hobby. “Eu escrevia sem mostrar para ninguém”, lembra. Hoje publica, evidentemente. Julho é um bom mês para morrer é o seu quinto livro – antes vieram Pirilampos cegos, O gosto amargo de qualquer coisa, Despoemas e Palavras que devoram lágrimas – e um novo já está nas mãos de Eduardo Lacerda, o editor da Patuá.
Agitador cultural, é um dos organizadores da Flipobre. É também amigo há mais de década de Maria Valéria Rezende - “ela é uma avó ou uma mãe pra mim” -, sua colega de Clube de Conto da Paraíba e com quem Laura relata um encontro na carta que escreve para a mãe em Julho, o que nos dá a deixa para voltar para o livro justamente com o trecho no qual a vencedora do Jabuti 2015 aparece:
“Maria Valéria Rezende, escritora ali dos Bancários. Depois de uns três desencontros, lá tava eu tomando o cafezinho italiano com ela, em sua cozinha. No telefone, disse que tava cansada por ter chegado recentemente de uma viagem ao Haiti ou Honduras. Não parecia, quando cheguei lá, pelo contrário, perto dela a cansada era eu. Valéria, assim como sua cozinha, era uma simpatia. Era véspera de São João, cheguei no começo da tarde, antes das duas horas, só saí de la quando as primeiras fumaças das fogueiras nas ruas dos bancários entraram pelas janelas”.
Laura não assume e eu não sou especialista – longe disso, aliás – para cravar, mas acho que a situação a deixou com depressão. “Carrego uma carne podre na boca. Não dá pra sentir um sabor novo quando já se mastiga isso há anos. Uma carne esquecida que não tem como engolir, não tenho estômago para ela. Quando as memórias vêm, não dá pra se atentar às partes boas, não sei separar a parte podre da doce nesse bolo pastoso, lembro tudo. Na demência, a gente deve poder dar uma mordida daquelas, trinta e tantas mastigadas no vazio da boca vazia”, ela escreve. “A saudade, não importa o tipo, fede à carne podre”, continua. “Quem enfiou essa Somália inteira dentro do meu coração? Meu coração daria muita fotografia premiada aos olhos de Sebastião Salgado. Aqueles meninos cadáveres, aqueles magrelos soldados, aquele sal, sol, areia e poeira, aquele belo cenário de tragédia”, ainda registra.
Em 2014, um estudo apontou que no Brasil as mortes por depressão tinham aumentado em 705% nos últimos 16 anos, ou seja, o mal cresceu junto com a geração de Laura, justamente quem Roberto quis retratar na obra. “Tenho 37 anos e queria trazer personagens da minha geração. Há um projeto para falar sobre ela. Criei Laura a partir das pessoas que vivem no meu entorno na universidade”, diz o autor.
E, ao falar de sua geração, Roberto constrói uma adolescência na década de 1990, quando Carolina Dieckmann e Marcello Novaes contracenavam em novelas e fichas telefônicas serviam para que, de um orelhão, se ligasse para a Jovem Pan para pedir How deep is your love, do Take That. Esse universo que dá o tom da trajetória que a moça repassa até o momento cabal que escreve a carta. E tudo, de certa forma, parece confluir para uma única frase da moça: “Sou de uma geração que é dada a estragar finais”. Roberto também se sente dessa forma?
“Essa foi uma das primeiras frases que elaborei no livro. Ela é muito forte. Cresci lendo Stephen King e ele tem fama de estragar finais. Os livros recentes de literatura brasileira que leio tem finais que não me agradam, mas não importa, o final é só uma conclusão, apenas um detalhe. Fico feliz com algumas pessoas da minha geração, mas muitos ficaram reacionários, com pensamento político muito superficial, não sabem entender ironia, não consegue conectar ideias, fora que conheço muita gente que nem tenta mais se comunicar, simplesmente se isola. Acho que a tendência dessas novas gerações é se isolar cada vez mais. Vejo cada vez mais as pessoas trancadas em seus apartamentos. Se algo vai contra o que gosta, nem briga mais, desconecta e vai atrás de pessoas que concordam com ela. Se fecham em grupos, em ilhas. Mas depois do caos as pessoas se conectarão por tribos, depois cidades e novas civilizações, enfim”.
No entanto, Julho é um bom mês para morrer não traz apenas o drama de Laura e de sua geração. A pessoa que a moça mais ama, confessa, é sua avó, que no seu aniversário de oito anos lhe deu um dicionário. “‘Pra você entender que às vezes o que você sente tem palavra pra isso’, imagino ter sido a dedicatória que ela nunca escreveu”, confabula a personagem. E se a luta de Laura é resistir em seu apartamento, a de voinha foi um tanto mais sofrida, ainda que, durona, não fique de lamúrias e nem transpareça fraqueza por ter perdido os três filhos afogados no mar. Se a geração de Laura é dada a estragar finais, não apenas o final, mas toda da vida da vovó foi destruída sem que ela tivesse culpa alguma por isso.
“Foi foda pra ela saber que, enquanto os filhos se afogavam, o marido enchia o rabo de cana na beira do açude. ‘Dizem que tava tão bêbado, que nem teve forças para levantar e ir tentar socorrer. Ficou dando risada’, tinha raiva nas palavras do meu tio, ‘Cu de cana’. Depois desse dia, meu avô nunca mais colocou uma gota de álcool na boca. Mesmo assim, trinta anos depois, morreu de cirrose”, escreve Laura. “Não dá pra crucificá-lo por essa negligência. Foi responsável enquanto pôde ser, a cachaça turvou sua a sua mente e, quando a mente turva, não dá pra controlar nem a si, imagina os outros. Meu avô era um trem desgovernado tentando se manter parado. Como diria uma amiga, nessas condições as coisas acontecem. ‘Acontecem, Laura, simples, acontecem’”, tenta se confortar a idosa.
Ainda sobre como o álcool impacta na vida da avó e de Laura – a cerveja está entre os parcos itens indispensáveis para sua resistência, vale lembrar -, um ponto me chama a atenção. O Brasil vive hoje um amplo debate (mentira, não chega a ser um debate, mas um monte de gente berrando suas convicções sem criar diálogo algum, tal qual Roberto apontou há pouco) sobre a legalização ou descriminalização de diversas drogas. No entanto, olhando para a nossa produção literária contemporânea, o álcool é justamente a substância que mais degrada famílias presentes nas páginas escritas por nossos autores. É assim em Enquanto Deus não está olhando, de Débora Ferraz. É assim em O frágil toque dos mutilados, de Alex Sens, isso para ficar em apenas dois exemplos. E, claro, nem precisaria dizer, é assim em Julho.
Roberto, no entanto, contorna a questão. “O alcoolismo aparece como fuga, mas é só um elemento para outras fugas que há no livro, tanto que é tratado de uma maneira mais leve, Laura mesmo usa o álcool como algo social. Quis evitar o maniqueísmo de que o álcool destruiu a vida. Cada um escolhe a maneira de se destruir ou não, de usar as coisas como quiser. Eu não gosto de fazer apologia às drogas, de dizer que são as melhores coisas do mundo. Quem é usuário sabe que não é assim. Vejo muito caras dizendo que cheiraram uma carreira de pó e fizeram o melhor texto do mundo. Mas o foco do texto não tem que estar na droga, ele que precisa ser bom.”
Voltando à cena de Moisés – que ilustra um quadro de voinha -, a resistência é mesmo o que nos resta. Aqui, perto de casa mesmo, conheço uma história parecida com a de Laura (ou de Clara em Aquarius): um colégio gigantesco comprou todos os terrenos de um quarteirão, exceto o de uma única casinha, que está lá até hoje, obrigando os muros da escola a fazerem um inesperado contorno – alguém ali conseguiu resistir ao apelo do dinheiro. É o que resta, repito. Deus abriu o mar para Moisés, mas não abriu para os filhos de voinha e nem salvou Laura. Que cada um se vire. Mesmo se houver alguém superior em algum canto – extraterreno ou não -, ele não anda abrindo mar para mais ninguém.