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Vista de longe – ou de uma distância que nos permita contemplar um conjunto maior do que aquele que reúne nosso punhado de escritores preferidos –, a literatura brasileira recente é bastante monótona. Em sua superfície, estão centenas de livros, publicados todos os anos, com um narrador masculino, branco, de classe média e absolutamente desinteressante falando sem parar de si próprio e de seu mundinho de metro quadrado. Daí, tem os das narradoras mulheres, brancas e de classe média, fazendo a mesma coisa. Alguns apimentam o texto com um pouco de sexo e traição, outros tentam requentá-lo com raspas de erudição enciclopédica, ou poesia, ou filosofia barata. Tem os moderninhos, que mimetizam a linguagem da internet, e aqueles que, porque vão narrar uma história situada em tempos mais remotos ou em cidades do interior, acham que devem usar um tom passadista, como se estivessem escrevendo nos anos 1930, quando não no século XIX. Há também, é claro, os romances românticos, os de fantasia, os espíritas, os de autoajuda, os que não se sabe sobre o que estão falando... De qualquer forma, tudo muito igual, muito previsível e, quase sempre, muito, muito chato.

Até por isso, um livro de contos como Reza de mãe (Editora Nós, 104 p.), de Allan da Rosa, que acaba de ser lançado, merece uma leitura atenta. Para começar, são outras personagens, com outras preocupações e outras falas que circulam por ali. Pessoas de diferentes idades, procedências e destinos, quase todas pretas e pobres, mas nem por isso reduzidas à sua cor e condição. Suas histórias, tumultuadas e barulhentas, às vezes meio sujas (como são sujos os corpos que trabalham), extravasam as margens delicadas do livro e quase escorrem por nossos dedos – não estamos, afinal, assistindo ao noticiário mediado pela mocinha bonita de fala mansa, nem ao programa policial apresentado pelo ogro de terno apertado que incita a prender e a arrebentar. A matéria que se move nessas narrativas não foi domesticada pelo discurso dominante, seja ele o do jornalismo, da polícia ou da literatura. Há, me parece, uma tentativa de experimentar e deixar fluir outras perspectivas. O que não quer dizer que o autor não exerça controle na construção textual, muito pelo contrário: tem rigor em sua escrita, tem cuidado na escolha das cenas, tem estudo na linguagem.

Escorregamos para dentro do livro junto de Valdeci, que toma o metrô no final do dia fedendo a açúcar. Ele vende churros na porta de um colégio caro e o doce gruda em sua pele, peguento como a humilhação que sente diante dos pirralhos arrogantes que precisa servir. Mas o conto não é apenas sobre ele, sobre o açúcar, sobre o suor do trabalho e sobre a raiva que são esfregados embaixo do chuveiro. Assim que termina, Valdeci grita para o barraco de baixo avisando que já podem tomar banho, também (é que mais de um chuveiro em funcionamento no lugar derrubaria a luz e ficariam todos sem energia). Então, vamos passando de casa em casa, meio como num filme de Buñuel, encontrando a próxima personagem embaixo d’água, capturando-a em seu momento mais íntimo (quando, longe de tudo, pode refletir sobre si) e seguimos adiante. Somos introduzidos, assim, não só ao espaço e às personagens possíveis dos demais contos – são velhos e meninas, jovens rapazes e mulheres maduras – como ao próprio ritmo do livro, que parece convidar o leitor a se deslocar de sua perspectiva, a dobrar a esquina para ver o que seus olhos não alcançam, a perseguir por calçadas e becos uma história que não é a sua.

Se, como leitores, prosseguimos relativamente desimpedidos, para as personagens do livro os passos são lentos, e suportam uma carga antiga – elas gastam boa parte do tempo balançando no metrô lotado que cheira a suor e fome, no ônibus onde “metade dos sentados dorme, metade dos de pé também”. E a vida não é muito diferente nos barracos, nas escolas, no hospício, na vistoria do presídio, na mira da polícia, do pastor. Até aí, pode parecer que estamos diante de mais uma obra de denúncia social (o que não a desmereceria), mas Allan da Rosa é angoleiro e traz para a roda algumas surpresas a mais. Suas personagens não são apenas vítimas no mundo, também se sabem responsáveis por alguns de seus desacertos. Por isso mesmo, refletem, pisam com cuidado, reagem de maneiras que podem parecer inusitadas.

No conto O iludido, por exemplo, um jovem vê seu irmão bandido torturado pela polícia (“mero pacote inchado, ali quem dividiu beliche contigo”) e, em vez de contra-atacar ou fugir, parte para cima do “coronel” com uma proposta insólita: garante que lhe fecha o corpo para tiro ou arma branca. A narrativa desestrutura as expectativas do leitor. Saímos das descrições da tortura, nos afastamos do discurso da polícia e dos fascistas de internet (“Apartamento de bandido é no cemitério, quintal de bandido é a vala!”), para acompanhar a fala de Caçú, que cresce e toma conta do texto – abusada, absurda, feita de vidro moído e raiva, armadilha arquitetada em carne e ossos. De repente, nos vemos rindo em meio a um conto que cheira a sangue. Não há redenção, ninguém se salva ali, mas, como nos filmes de Tarantino, a narrativa se vinga.

Em outro conto, Quando a UTI veio me pegar na escola, um garoto descobre que está marcado para apanhar – e muito – no final na aula. Como ninguém faz nada no colégio, ele liga para o pai, ex-presidiário, fiscal de ponto de táxi na rodoviária, que avisa logo: “Teu vô, se eu apanhasse na rua, me esfolava o coro em casa”. Acompanhamos sua angústia no tempo que lhe sobra, aguentando o deboche dos colegas, imaginando com ele o massacre, até que, já na saída, aparece o pai, com mais 12 taxistas, todos armados, para enfrentar a ganguezinha e encerrar a história. Para além do inesperado, a cena é cuidadosamente montada e ficamos de lado, com o menino, só observando o desenrolar das coisas. Alguns desses homens e garotos podem ser os mesmos que aparecem em outras narrativas, participando de manifestações, jogando futebol, tomando banho depois do dia de trabalho.

Também as mulheres transitam entre os contos, mais fortes em alguns, mais vítimas em outros. Embora o autor se preocupe em trazê-las para o centro de algumas histórias, elas ainda são basicamente as mães e avós, senhoras abnegadas a visitar o marido na prisão, a preparar a comida para o filho no hospício, a chorar a filha perdida. São, em suma, menos plurais e menos complexas que os homens que circulam por ali (como contraponto, fica a sugestão de leitura do belíssimo romance Becos da memória, de Conceição Evaristo, que elabora muitas outras possibilidades de ser mulher). Isso não impede que Allan da Rosa construa uma narrativa impactante sobre a culpabilização das mulheres que abortam, em O jogo da velha, por exemplo, mesmo que seja a partir da perspectiva do filho.

Esses deslocamentos das personagens espelham outros, que estruturam cada uma das narrativas. No primeiro conto, Pode ligar o chuveiro?, isso é mais evidente, uma vez que o próprio texto parece deslizar como a água, percorrendo diferentes espaços, mas nada para, efetivamente, no livro. Podem ser o ônibus e o metrô, pode ser a fala, que cresce e avança, pode ser o desespero que se aproxima devagar. Também os gritos, a chacota, as vaias no pátio do colégio ou no campo de futebol criam, no vácuo do silêncio, a impressão de movimento. Fora as pernas que chutam ao gol, as que se arrastam cansadas de esperar, os joelhos que doem, as mãos que cozinham, que trazem afeto, os corpos que jogam capoeira, que tombam e levantam e arrastam outros consigo. Em movimento, as vidas se expandem.

Reza de mãe traz 14 narrativas, algumas mais longas e estruturadas, outras muito breves, quase crônicas, sem uma conexão maior com as demais, embora ainda relacionadas com o conjunto do livro. Talvez o que mais chame a atenção seja a ousadia do autor, que, como já disse, se permite experimentar diferentes modulações, tanto em relação às personagens quanto na construção da linguagem e da perspectiva, que se desloca também – às vezes, é preciso um esforço para localizar de onde está vindo a fala, temos que olhar em volta, por cima dos ombros das personagens, nos posicionando melhor para ouvir. Ciente de que lida com um material pouco aproveitado em nossa literatura, um material que parece exigir ajustes estéticos para reverberar, o autor investe no estranhamento da linguagem, em sua sonoridade negra e periférica, mas não esquece que ela precisa ter algo a dizer sobre o mundo.

Por outro lado, não há em Allan da Rosa o caráter didático (e um tanto autoritário) que vemos em algumas narrativas de Ferréz, por exemplo, que vez ou outra se enfia em meio aos textos para criticar o sistema e aqueles que são cooptados por ele, ou mesmo para ressaltar a importância – e a distinção – da vida intelectual. Se podemos dizer que Reza de mãe ultrapassa a necessidade, sempre presente, da denúncia social, é importante ressaltar que o livro também se recusa ao moralismo, muito comum em produções vindas da periferia, especialmente o rap. Nesse sentido, parece contribuir, generosamente, para o alargamento da representação dos possíveis no cenário literário nacional. Junto dele, conseguimos ouvir algo que ficava encoberto pela voz lamuriante da classe média, ou pela potente soberba de nossas elites.

Pode não parecer muito, mas talvez esse seja um dos mais importantes desdobramentos de nossa literatura nos últimos tempos. Carolina Maria de Jesus impulsionou a roda, em 1960, com a publicação de Quarto de despejo, mas o golpe de 1964 tentou estancar o movimento, que foi sendo retomado nas décadas seguintes por escritoras e escritores negros e, mais recentemente, pelos coletivos de periferia. São muitos nomes hoje ensaiando novas formas de expressar o mundo, para além da perspectiva da casa-grande, incluindo outras vozes, ampliando nosso repertório imagético e estilístico, enriquecendo nossa literatura. Com o Brasil dando outra guinada antidemocrática, o campo literário tende a novamente se fechar – muito da efervescência cultural vinda das periferias nos últimos anos refletia o ânimo do desafio de hierarquias seculares, que governos mais progressistas estimulavam, mesmo com seus muitos limites. Quero crer que conquistas estéticas e políticas tão significativas, como a prosa de Allan da Rosa, não se curvarão a esse fechamento e permanecerão presentes, resistindo, dizendo não e indicando a necessidade de uma literatura, uma cultura e um país verdadeiramente democráticos.