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Mapas são representações de caminhos geográficos. Mas também o desejo tem suas cartografias. Isso transforma álbuns, inventários, cidades, romances, esculturas, músicas em mapas. Quando tudo se dilui, são esses mapas que guardam algo da materialidade do que passou e se tornam ilhas de memória. Arrisco dizer que o mapa é uma figura central, uma metáfora possível para entendermos certas presenças e ausências nisso que dizem ser uma “modernidade tardia”.

Os livros de poesia também são mapas; é uma das ideias que ficam após a leitura de nova edição de Cigarros na cama, de Ricardo Domeneck. Dividido em três partes – ou três poemas soltos que podem ser independentes, mas que dialogam bem entre si –, o livro mostra os caminhos de um homem cujo relacionamento acabou. A dor é transposta no cigarro: o vício, tomado do ex, perdura incessantemente e liga os poemas como um fio de Ariadne. Por vezes vemos uma diva ferida pelo abandono do companheiro, que às vezes parece um smooth operator; noutras, um sujeito perdido diante da ausência do outro – que é uma presença às avessas, quase insuportável. A figura da rainha Catarina de Aragão é a síntese mais completa do eu poético que ali fala: uma mulher que vive no imaginário da História como a grande traída, uma “vítima” do rei Henrique VIII, que a “trocou” por Ana Bolena. Ao ler o livro, nos deparamos com 28 imagens (como fotografias ou pequenos filmes) de uma dor em curso que, assim como um filme de arte, não tem uma narrativa necessariamente linear ou que obedeça à regra “apresentação-desenvolvimento-clímax-desfecho”.

Até então nenhuma novidade, porque Cigarros na cama é um livro de 2011, já conhecido do mercado, ainda que à época tenha sido lançado discretamente. Mas agora ele volta publicado pela Luna Parque em uma edição com mais duas obras do autor: Mais lamúrias em ouvidos moucos e Contando os dias, ambas inéditas. São como desdobramentos de uma dor, de como ela foi durando e mudando ao longo do tempo até alcançar outras dimensões no imaginário desse eu poético. O livro será lançado dia 3 de dezembro, em São Paulo.

O primeiro poema de Mais lamúrias em ouvidos moucos cita nominalmente a portuguesa Adília Lopes, o que já indica o tom anormal (talvez distópico) daquele sentimento que nortearia o resto da obra. Há uma oscilação entre a nostalgia desse relacionamento passado e o fato de esse sentimento (esse amor) catapultar o eu para fora da rotina e das pequenas opressões do cotidiano. O mouco do título pode ser o ex, mas também parece ser o mundo externo, que não reflete o mundo interno do eu, e continua seguindo como se nada houvesse ocorrido.

Contando os dias é um poema que parte do romance entre o imperador romano Adriano e o jovem Antínoo, brutalmente interrompido pela morte deste. Por meio de referências históricas e mitológicas, Domeneck mostra um eu atemporal, que constrói o objeto do seu desejo ao longo das eras. Tudo parece ter conspirado para o nascimento desse rapaz – chamado de O Moço, o que o coloca em um lugar mágico, especial. Por isso, o poeta fala também da gênese das paixões, de como nós, ao amarmos, vamos construindo o alvo do desejo em nosso imaginário. O rumo dessa construção é ditado pela realidade, e por isso há algo de doído nesse poema.

Como um todo, o livro dialoga com outra obra de Domeneck, Ciclo do amante substituível (2012), tanto pelo teor homoerótico quanto pela encenação da intimidade. Em ambos, entretanto, questões de ordem individual alcançam uma dimensão coletiva por falar de temas comuns. Nesse sentido, Cigarros na cama é um mapa que nos leva às dores de um outro que somos nós mesmos. Dores que não alcançam a capa de um jornal, mas que marcam as páginas do livro de poesia.

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Abaixo, Ricardo Domeneck fala sobre os aspectos acima mencionados e outros que permeiam a reedição de Cigarros na cama. A entrevista foi concedida por e-mail.

 

Você fuma?
Incessantemente. A primeira coisa que fiz ao acordar, junto com um café. Acendi um cigarro para responder estas perguntas.

Como podemos entender essa nova edição de Cigarros na cama: são três livros em um ou um livro que se desdobrou em outras duas partes com o tempo? Pode falar sobre semelhanças e diferenças nos contextos de surgimento dessas três partes?
Podem ser lidos de várias maneiras. São três poemas, mas cada qual funciona de forma diferente, creio. O primeiro, que formava a primeira edição, pode ser visto como livro de poemas curtos, também como poema longo numerado, ou um poema-livro. A segunda parte poderia ser a continuação do primeiro, e cheguei a pensar tanto em numerar a segunda parte começando do 1 como começando do 29, já que o último poema da primeira edição era o 28. Mas Marília Garcia, minha editora lá na Luna Parque e eu decidimos que funcionavam melhor de maneira mais solta. Queria que os poemas funcionassem em sequência, mas também como poemas avulsos. Espero ter conseguido isso em alguns. Mas eles ganham se lidos juntos. Há poemas na segunda parte de tempos diferentes, ao longo do processo de cura daquela separação. Ainda havia dor e raiva em alguns poemas da segunda parte, mas hoje, estando em paz, era importante encerrar o livro em um poema de amor pel'O Moço, pois o amor ainda existe, agora em paz e à distância. “Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.”

Cigarros na cama é de 2011. Mais lamúrias em ouvidos moucos e Contando os dias são mais recentes. Entretanto, parece haver uma continuidade entre as três partes: a primeira seria a dor de um fim de relacionamento em uma esfera individual; o segundo, em uma esfera coletiva; e no terceiro, essa dor alcança uma esfera psíquica, imaginária ou, arrisco dizer, arquetípica (na figura dos personagens históricos Antínoo e Adriano, mas também evocando seres e eventos da mitologia romana). Gostaria que você comentasse esse diálogo entre as obras.
Em Hable com ella [Pedro Almodóvar], há uma conversa entre o jornalista e a toureira, no carro, em que ele cita o Tom Jobim da canção Amor em paz, e diz “Porque o amor é a coisa mais triste quando se desfaz.” Uma separação consome tudo. Engole o mundo. Não há política, não há sociedade, há apenas as próprias tripas para fora. Há poemas em Cigarros na cama que foram escritos ao mesmo tempo dos poemas sobre o mesmo assunto em Ciclo do amante substituível (2012) e Medir com as próprias mãos a febre (2015). No livro de 2012, eu digo com sarcasmo sincero, num poema escrito nos dias seguintes à separação, que me chocava que minha situação não estivesse nas primeiras páginas dos jornais, e pesquisei a primeira página de vários jornais do mundo do dia seguinte para escrever o poema. O poema se chama As prioridades do mundo. É um poema escrito ao ferro-e-fogo da cruz-e-espada do pé-na-bunda. Perdoe: eu estava morrendo. Já no livro de 2015, no poema Certamente alguma manhã, falo sobre como o mundo vai voltando a recompor-se e até notamos os outros quando chega engatinhando a paz da aceitação de um desastre amoroso. De qualquer forma, nos últimos anos tem sido importante para mim a conjugação entre lirismo e consciência histórica. A poesia lírica não precisa ser uma ode ao umbigo, e não é, em vários poetas. Mestres como Kaváfis e Pasolini, ou Piva no Brasil, mostraram isso.

O jogo de encenação do eu poético nas três partes, é diferente: em Cigarros..., sabemos que há um homem, um ex-companheiro, mas não sabemos o gênero de quem fala; em Mais lamúrias..., há, aparentemente, uma mulher (“Disseram que voltei germanizada”); mas, páginas depois, surge um homem (sem conexão por cabos/ com o mundo neste quarto / de hotel, sozinho, mal sei / agora qual a previsão / do tempo onde você/ se encontra ou se perde). Em Contando..., encontramos a referência de um amor entre iguais pela evocação à existência e história de Antínoo. Pode comentar essas variações?
Veja bem, a identidade de gênero é uma encenação. O uso do pronome feminino não leva necessariamente a uma mulher, no caso. Homossexuais dos dois lados do Atlântico, onde convivo, usam o pronome feminino para si mesmos. Mulheres e homossexuais se tratam por “amiga”. Portanto, há um jogo de identidade nos poemas. Ao mesmo tempo, o poema da “germanizada” joga com o samba de Luís Peixoto e Vicente Paiva, imortalizado por Carmen Miranda: Disseram que eu voltei americanizada. Mantive o feminino por um jogo de identidade ainda com Carmen Miranda, a que deixou o país e trabalhou fora. Há jogo de identidade de gênero e ainda jogo de identidade nacional.

A ideia em Contando os dias me parece ser a de que o universo e o imaginário do eu (que poderíamos associar ao imperador Adriano, ainda que não tome esse nome) conspiraram para o nascimento d'O Moço. De alguma forma, houve participação do eu na criação desse homem. E você lança mão da história de Antínoo e Adriano, com referências à mitologia romana (a loba do Capitólio e o rapto das sabinas), para construir essa ideia. Você a situa no momento presente. Como ocorreu a descoberta de que poderia se apropriar/reler essa história?
Conforme vamos escrevendo nossa história, nossa própria, nós a conectamos com a dos que vieram antes de nós. Minha releitura da posição do homossexual fora e antes do âmbito cristão ocidental é muito importante para a minha própria história e para a história dos meus irmãos e irmãs sendo atacados e mortos hoje em dia. Uma demonstração de que nossa noção de “naturalidade” é uma invenção, que até mesmo no Ocidente, sem falar nos povos ameríndios!, a relação com a homossexualidade sempre foi variada e nem sempre violenta. Descobertas de histórias como a de Adriano e Antínoo foram muito importantes para minha mitologia pessoal, ou outra com a qual venho trabalhando para um livro futuro, o próximo – a de Stefan George e Maximin, o jovem poeta Maximilian Kronberger. Mas também minha pesquisa atual sobre o homossexual nas sociedades ameríndias, como no meu panfleto Bandeira (poema para vozes sobre palanques) escrito após o ataque terrorista à boate na Flórida, em que digo: meu nome-função / foi já temido e respeitado / como dádiva dos espíritos // wíŋkte entre os lakotas / nádleehé entre os navajos / lhamana entre os zunis / aayahkwew entre os crees / sipiniq entre os inuítes // entre os itelmens da sibéria / koekchuch / entre os samoanos da polinésia / fa'afafine // e girei as ancas como / köçek / em palcos para os otomanos / e mesmo entre os que ontem /mesmo metralhavam-me / já fui mukhannathun / ou ainda hoje hijra / chamam-me pela índia”.

O livro trabalha de forma satélite a ideia dos limites de uma relação entre pessoas de diferentes gerações. O/a amante mais velho/a sente no corpo a ruína, quando confrontado/a com a juventude do rapaz mais jovem. Há um medo nesse eu que fala, como se houvesse, essencialmente, um abismo entre essas pessoas. Esse abismo se reforça (ou concretiza, talvez), com o fim do relacionamento e com o imaginário povoado por esse sentimento que deixou o amante. Parece ter a ver com uma questão que percebo visível na nossa sociedade - refém das encenações, aparências, do consumo e do efêmero –, que é a de que não se sabe (ou se desaprendeu, não sei) a envelhecer. Como você entende esse medo?
Isso é um problema da sociedade patriarcal contra as mulheres, essa obsessão pela juventude, que por algum motivo se torna especialmente problemático no mundo gay. O que chamo de “complexo de Peter Pan”. Uma infantilização que vejo, infelizmente, em muitos homossexuais masculinos. Uma recusa ao adulto, por associá-lo à velhice. Homossexuais pelos clubes noturnos de Berlim com roupas de adolescente. Isso é uma coisa pessoal minha. Há quem discorde. Fui muito marcado por duas peças de Rainer Werner Fassbinder, Gotas d'água em pedra escaldante (1966 – filmada mais tarde por François Ozon), ou As lágrimas amargas de Petra Von Kant (1971, filmada pelo próprio Fassbinder), que tratam ambas das dificuldades particulares de uma separação homossexual entre pessoas de idades muito diferentes, uma relação gay na primeira e lésbica na segunda.

É possível, na sua opinião, ver algum tipo de entendimento político na obra? Entendê-la a partir de um diálogo com fatores extraliterários?
Vou dar uma resposta pronta e bastante direta a isso: sonho com o dia em que os poemas de amor de homem para outro homem serão apenas isso: poemas de amor de um homem para outro homem. Mas em um país como o Brasil e num tempo como o nosso, poemas de amor de um homem para outro homem têm implicações políticas inescapáveis, portanto trabalho com isso em mente. Até mesmo lançar uma antologia da poesia homoerótica grega hoje em dia teria implicação política completamente inexistente no contexto original dos poemas.

O livro é encerrado com uma “página reservada para as lamúrias do leitor”. Como veio essa ideia? E por que apenas uma página?
Sei que o livro vem servindo para alguma coisa, para alguns leitores que passam por esta experiência e chegam ao livro, o que me alegra. Sem querer destruir o romantismo da coisa, mas havia aquela página. A editora é pequena, e decidimos usá-la para isso. Não havia espaço para mais. Somos legais, mas pobres. O leitor pode se sentir à vontade para escrever nas margens ou por cima dos meus.

Essa página nos permite pensar que agora o leitor pode se lamuriar. A meu ver, cria a ideia de que tudo o que viu foram lamúrias e que chegou a hora da catarse de quem lê. Cria um distanciamento dos sentimentos expressados – o eu está imerso naquela dinâmica melancólica e magoada, ao passo que essa página é como se fosse a racionalidade dizendo “tudo são lamúrias aqui”. Algo que é perceptível em Mais lamúrias... e que é bastante reforçado nesta página. De alguma forma, você sai do seu eixo e permite ao leitor um espaço para reverberar o que leu/sentiu com os poemas, criando um espaço de interlocução na materialidade do livro – ainda que essa interlocução seja encenada, já que você não dialogará com os escritos desses leitores. Gostaria que comentasse esse olhar.
Você acaba de me dar uma ideia. Posso pedir que os leitores me mandem fotos das páginas com suas lamúrias. De qualquer forma, meu humor é autodepreciativo, sempre. É importante rir da própria dor. Sei que a dor da separação é real, e incrivelmente assustadora. Mas é importante lembrar-nos de que há dores coletivas, há catástrofes maiores. Essa mistura entre o pessoal e o coletivo foi muito bem mostrada por uma mestra disso, Marguerite Duras, em seu Hiroshima Mon Amour.