A expressão “Nova York” cintila certos sinônimos que hipnotizam a nossa classe média, ainda que em tempos de crise. É uma cidade gorda, de tênis Nike+Adidas, de bugigangas com aquela marca da maçã pululando entre sacolas, da rede de restaurantes Eataly e que ainda carrega as sombras de um cosmopolitan às 3h da tarde, tal e qual a série Sex and the city um dia vendeu para o mundo. É um templo de diversão seguro, burguês e perfeitamente gentrificado. Mas não é dessa cidade que estamos aqui falando. Volte no tempo. Rebobine algumas décadas e estacione em meados dos anos 1970.
Nova York aqui é suja, perigosa. Você pode dar um passeio pelas ruas e não mais voltar para casa. O wild side – a sarjeta – é em todo lugar. Andy Wahrol fotografa os notívagos. Patti Smith e Mapplethorpe vagam juntos por suas ruas. Há pouco, Iggy Pop havia dito que queria “ser seu cachorro”, há pouco existia O Velvet Underground e o New York Dolls falava de garotos sem lar, que precisavam de uma carona de volta para casa. A disco music despontava turbinada por cocaína e o hip hop dava seus primeiros passos. O ambiente era hostil, o ar pesava, mas existia uma marquee moon lá em cima. É justamente essa época de NY que parece agora voltar a receber atenção. Bons exemplos da retomada histórica: a série de TV Vinyl, criada por Mick Jagger e Scorsese, e o romance-tijolo Cidade em chamas, do novato Garth Risk Hallberg, que a Companhia das Letras lançou há pouco.
Com menos de 40 anos, Hallberg não viveu o período de som e fúria da sua história. Talvez por isso, o livro tenha de forma tão evidente uma inspiração musical, quase como uma trilha sonora a percorrer suas páginas: os discos Horses, de Patti Smith, e Marquee moon, do Television. É a música desses artistas que faz a aura da cidade até hoje. Pense em NY dos anos 70, que inevitavelmente uma playlist começa a tocar na sua cabeça.
A escrita “rockista” de Hallberg acontece entre os primeiros sete meses entre os anos de 1976 e 1977. São histórias de “neonovaiorquinos” ou de gente perdida, aparentemente sem um elo, que se encontram no famoso tiroteio ocorrido no Central Park durante a noite de réveillon. É quando a urbe imensa e impessoal se abre como um vilarejo diante do caos emocional que uma tragédia instala.
Para segurar a teia de histórias que o livro se propõe ambiciosamente a narrar, Hallberg lança mão de uma escrita mista, que se alastra por vários formatos: do mais “tradicional” aos momentos em que o livro se abre como um zine ou uma reportagem de jornal. O autor não quer perder nenhum pormenor da cidade que trata como musa. E, a seu favor, ele tem uma forma de escrever madura, em que momentos tensos e poéticos se entrecortam por vários momentos. Ainda assim, mil páginas não deixam de ser exagero. Se fosse uma playlist, Cidade em chamas precisaria tirar umas três faixas para ficar no ponto.
Uma urbe entre o som e a fúria
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- Categoria: Resenhas
- Escrito por Schneider Carpeggiani