O mundo inteiro contido na sala de jantar, no botão do vestido, na letargia das pessoas que parecem tão normais sentadas em suas cadeiras. O mundo inteiro revisto a partir de um ovo, de um rato, de uma rosa. A captura desse mundo, e mais, a revelação disso que se capturava em uma “gramática-glamour” que inexplicavelmente enfeitiça seu leitor era algo que Clarice Lispector, mais do que qualquer outro escritor ou escritora no Brasil, soube fazer. E o fez de forma subversiva entre talheres de prata e taças de cristal.
É nesse caminho que o biógrafo da escritora, Benjamin Moser, se lança no prefácio desse livro que, pela primeira vez no Brasil, reúne todos os 85 contos publicados por Clarice Lispector. Lançada primeiramente no mercado norte-americano/britânico, essa publicação organizada pelo mesmo Moser, lançou um enorme interesse do mercado de língua inglesa pela obra da escritora que, sim, era brasileira e que, sim, era igualmente estrangeira a qualquer conformação existencial. Lá fora, as loas a essa edição não foram poucas e o livro terminou 2015 sendo destaque em praticamente todas as listas de melhores do ano. Com destaque para o pertinente (talvez o melhor) elogio feito pelo New York Times: “um livro perigoso”.
Essa publicação perigosa, que agora chega ao Brasil, pode, igualmente, reativar a aproximação de leitoras e leitores brasileiros pela obra clariciana para muito além das frases de efeito estilo autoajuda com as quais a internet tentou domá-la.
Partindo de uma ordem cronológica em que os textos foram escritos, a publicação consegue dar conta simultaneamente de um recorte autobiográfico da escritora. Dos primeiros aos últimos contos, escavamos camadas de memórias que passam pela sua infância/adolescência no Recife, pela idade adulta em que ela vivia nos não lugares para onde o marido diplomata a levava e, finalmente, pelas ruas movimentadas do Rio de Janeiro onde a escritora passou os últimos anos de sua vida. A trajetória entre esses mapas e os debates existenciais e filosóficos, que os textos da escritora com frequência evocam, desenham um diálogo de micro e macro espaços: o que há de universal no ambiente doméstico e o que existe de doméstico em ideias universais, é uma troca e parece ser sempre a base das preocupações de Clarice.
Importante destacar que, ao fim de Todos os contos, há um importante - e raro - texto em que a própria escritora comenta as ideias por trás de alguns contos do livro Laços de família, além da nota bibliográfica que destrincha a organização do livro. Mas o grande destaque mesmo, para além dos próprios contos de Clarice, está na inicial apresentação escrita por Moser nas primeiras páginas: “Virando as palavras pelo avesso, conjurou um mundo inteiramente desconhecido - conjurando, também, a inesquecível Clarice Lispector: uma Tchekhov feminina nas praias da Guanabara”.
O universal da sala de jantar
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- Categoria: Resenhas
- Escrito por Carol Almeida