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- Miguel, o que é ser um Che Guevara hoje?

- É ser alguém que não pensa em como se dar bem, em como ganhar respeitabilidade. É ser uma pessoa que não se contenta com o que está feito. A energia para se reinventar permanentemente é a sua maior marca. Não vejo o ideólogo, vejo nele principalmente esta fonte de vitalidade.

- E no livro você fala também de Cristo, mas um Cristo guerrilheiro, revolucionário, que sem dúvidas estaria contra esses caras que pregam em seu nome atualmente. Acha que falta essa visão dele como personagem combativo no mundo de hoje?

- Cristo é revolucionário porque ninguém pode comprá-lo. Tudo no mundo atual é comprável. Em meu romance, há este jogo entre o que podemos lucrar e o prejuízo programado. Só acredito em pessoas que levam prejuízo. Este prejuízo, no livro, chega à renúncia da própria vida. Mas está também presente na vida do Professor Pessoa, que é um Cristo à sua maneira. Um Cristo da renúncia social.

O papo acima – troca de e-mails, na verdade – é fundamental para que o leitor comece a entender um pouco do novo trabalho Miguel Sanches Neto, A Bíblia de Che. A narrativa nos apresenta a Carlos Eduardo Pessoa, o Professor Pessoa, que largou as aulas de literatura na universidade para viver como uma espécie de eremita urbano em um antigo consultório de dentista, numa unidade de um prédio comercial de Curitiba. Mora no décimo quarto andar, mas não usa elevador – resolve tudo a pé. Sente ódio ao ter que comprar qualquer coisa, quer “se separar da manada”. Acredita que ter filho é se submeter a uma farsa que envolve reunião de pais na escola, festa para a criança, passeios... “não deixar descendência é a única atitude verdadeiramente ecológica”, confia. Adora sites de vídeos pornográficos. À sua maneira, um revolucionário. Revolucionário por renunciar boa parte do que o mundo lhe exige e tenta lhe empurrar. Tenho certeza que Thoreau sentiria orgulho.

No entanto, sua revolução pessoal chega ao cabo quando é convocado por um antigo colega para empreender uma aventura urbana em troca de polpudos pacotes mensais de dinheiro: encontrar por Curitiba uma suposta Bíblia que Che Guevara utilizara enquanto estivera na cidade, por onde passou em sua breve andança brasileira – no país, se disfarçaria de padre para não levantar suspeitas acerca de sua figura - antes de rumar para a Bolívia. Em suas leituras da Bíblia, Che teria se apaixonado justamente pela faceta guerrilheira de Jesus.

Não adiantava protestar. Eu já estava envolvido com aquela história. Um fascínio qualquer me empurrava para ela. Ter ficado tanto tempo sem fazer nada talvez me predispusesse ao trabalho, a qualquer trabalho. Melhor um que não fosse usual. Mas não era só isso. Algo ligava aquele caso à literatura. Se não fosse necessário alguém com conhecimentos literários, contratariam um investigador de verdade”, confessa o professor. “Era contra esse conforto de classe ao qual Che se opusera, renunciando a tudo. Nunca fui fã do comandante, mas tinha que me aproximar, profissionalmente, do mito. E algo nos unia: o ódio à vida burguesa”, também expõe.

É nessa empreitada que Pessoa se vê como uma ponta de um imenso imbróglio político – esquema de lobistas, corrupção, assassinatos, enfim, essas coisas corriqueiras que os poderosos fazem e que, neste momento, pouco importam para esta leitura do livro – e conhece Celina. Celina sim nos importa: ainda jovem, vinte e tantos anos, cujo relacionamento com um dos políticos da parte que menos importa possibilitou que realizasse alguns sonhos, como ter alguém que saísse em busca da Bíblia de Che para si. Se o professor é aquele que faz a revolução pessoal, Celina é aquela que acredita que o mundo todo pode ser mudado, é a pessoa que “leva prejuízo” que Miguel confia.

APOSTA NO INÓCUO

Seja pelas andanças de Celina com seu político, seja pelas andanças de Celina junto com o professor, dois destinos fundamentais na vida de Che têm papel-chave na obra: Cuba e Bolívia. “Cuba é o lugar onde gostaríamos de viver se pudéssemos acreditar no ser humano. Mas como o ser humano é esta matéria precária... Estive em Cuba antes de escrever este romance. Conversei com pessoas. Li livros. Observei as coisas. Acho que é uma bomba prestes a explodir. O estado totalitário obriga a população a sobreviver com pequenos expedientes, obtendo assim o mínimo. Tornou-se mais um museu a céu aberto da revolução, perdendo assim o seu sentido de atualidade. Aliás, este romance teve como primeiro título justamente esta expressão: Museu da Revolução”, conta Miguel.

Esteve também na Bolívia, onde, como parte de seus personagens, fez o roteiro baseado no caminhar de Che por aquele país marcado por ser o último destino de sua existência. “Fiz aqueles itinerários com prazer. Como falar de Che naquele momento sem ter estado no lugar em que ele morreu ou em que ele foi enterrado? A invenção nasce muitas vezes das sensações que os lugares e as coisas nos transmitem. A Rota do Che está relegada a um turismo de militância. Mas para mim ela foi os passos da paixão do homem que buscava em cada ação um prejuízo pessoal. Não há nada mais anticapitalista do que isso”.

É justamente para ter contato com esse anticapitalismo que Pessoa e Celina partem para Sierra Maestra, onde, tal qual a história do revolucionário de Rosário, o final é triste e desanimador, ainda mais para quem ainda acredita que a revolução – alguma revolução, alguma melhora neste mundo, alguma chance das pessoas serem mais importantes do que o dinheiro – possa um dia acontecer. O destino de qualquer revolucionário sonhador é, invariavelmente, ser tragado por sua causa? É ser cravado por balas de matadores profissionais dos Estados Unidos ou algo parecido? Talvez. Parece que o final da bem empenhada caminhada para a revolução é sempre o túmulo, salvo melancólicas exceções.

Miguel acredita, no entanto, que esse destino é o sacrifício, a morte com propósito, justamente por algo maior. “A história está cheia disso. Não ser razoável. Não dar as respostas esperadas. Constatar que nossos projetos não têm valor no mundo prático e continuar apostando neles. O que me agrada na trajetória de Celina e do Professor Pessoa é que eles estão sempre achando razões para fazer coisas que resultarão inócuas”.

A ARTE É A SOLIDÃO TOTAL. É LABIRINTO

Olhando para a bibliografia de Miguel, autor que já escreveu outros seis romances, impossível ignorar que seus dois últimos livros ficcionalizam sobre personagens centrais e diametralmente opostos na história do século XX: se a A Bíblia de Che é, evidentemente, sobre Che, em A segunda pátria a figura sobre a qual trabalhou foi Adolf Hitler. No entanto, o autor garante que não há um projeto literário que trace uma linha entre ambos.

- O que esses caras representam para você?

- Não há nenhuma relação entre Hitler e Guevara enquanto ideologia. Mas há uma coisa que os une. Foram dois líderes que investiram muito na autoimagem. Che e Hitler adoravam ser fotografados e deixaram uma coleção imensa de retratos. Foram midiáticos. Usaram a lógica das redes sociais antes de isso ser a praga contemporânea. O que eles representam para mim? Hitler é a encarnação do mal. A versão terrena do demônio, um demônio demasiadamente humano. Che é a força da juventude, do desejo, da inquietação, mas também da ilusão.

Na nossa conversa, Miguel ainda conta que seu novo trabalho surgiu de um papo regado a vinho que teve com um médico amigo, um homem que outrora era do MR8 – Movimento Revolucionário Oito de Outubro – e hoje tem uma fortuna pessoal. Ele que falou para o escritor da existência dessa Bíblia que Che carregaria consigo no Brasil e Miguel achou o tema fascinante demais para deixar de lado. Conto isso por causa da opinião que Pessoa emite em determinado momento do romance: “Um ficcionista sem imaginação não merece nosso respeito”. Ótimo esbarrar nesse tema em uma época que abundam autoficções insossas, na qual a imaginação dos autores nacionais parecem passar longe.

O próprio Miguel escreveu uma obra de autoficção que está na gênese dessa onda atual: Chove sobre minha infância, de 2000. Para ele, todavia, “a literatura brasileira não pode ser um ramo do jornalismo de investigação nem das aulas de história. Não pode ser um diário íntimo. O literário nasce sempre de um excedente de imaginação e de linguagem”.

E é o que faz bastante bem em A Bíblia de Che. Provocado pelo seu próprio protagonista, que também crê que a “militância gera má arte”, o autor conseguiu fazer uma obra sobre a militância, mas não militante. Sobre sonhos, mas sem ingenuidade.

- E o que gera bela arte, Miguel?

- A boa arte só pode nascer da independência de opinião. Você dizer o que pensa naquele momento – contra tudo, contra todos. Sem querer nada em troca, sem querer tirar partido. Eu nunca penso no que vão pensar sobre o que escrevi. Nunca escrever por procuração, para corresponder a expectativas. Nunca escrever um romance achando que é um abaixo-assinado. A arte é a solidão total. É viver no labirinto.