Crusoé A

Quando recebe o Prêmio Nobel de Literatura em 2003, J. M. Coetzee faz um discurso intitulado He and His Man, no qual propõe uma breve reflexão/reescrita da relação entre o escritor inglês Daniel Defoe e os personagens centrais de As aventuras de Robinson Crusoé, ou seja, o náufrago e seu companheiro Sexta-feira. Com isso, Coetzee relembra e celebra um autor canônico, que fundou um gênero, oferecendo ao uso corrente uma série de técnicas de escrita, de narração, de representação. Contudo, como é habitual da parte de Coetzee, a celebração não é irrestrita, pois com ela vem a torção crítica, o esforço de jogar a tradição contra si própria, forçando suas lacunas e silêncios em direção ao centro do palco.

Defoe já havia servido ao mesmo propósito quase 30 anos antes, em 1986, quando Coetzee publica Foe, um romance que narra uma história alternativa para a gênese de As aventuras de Robinson Crusoé. O discurso do Nobel, portanto, deve ser visto como um desdobramento desse livro, distante no tempo, radical em sua metanarratividade, que ganha edição brasileira com tradução de José Rubens Siqueira.

Boa parte do romance de Coetzee é narrado em primeira pessoa por uma mulher chamada Susan Barton. Ela fala de seu naufrágio, de como chegou a uma ilha rochosa e inóspita e de sua surpresa ao ser encontrada por um homem negro na areia, sendo em seguida levada encosta acima até a presença do “soberano”: Robinson Cruso (essa é a grafia usada por Coetzee). A leitura de Foe pode ser feita sem o conhecimento prévio do romance de Defoe – a virtual impossibilidade de se desconhecer Robinson Crusoé é também o que está em questão em Foe –, mas certos detalhes ganham ressonância quando os livros são postos lado a lado: o Cruso de Coetzee, tal como reportado por Susan Barton, não tem apreço por ferramentas e utensílios, não pensa em escapar da ilha, não cogita registrar sua experiência em um diário e vive cada dia apenas para sua subsistência; Crusoé, o personagem tal como apresentado em 1719 por Defoe, é a encarnação do conquistador ativo, do civilizador – faz uma série de incursões aos destroços de seu navio naufragado, retornando com artefatos variados que expandem seu leque de possibilidades de intervenção na ilha.

O principal artifício metanarrativo de Coetzee, portanto, é o de fazer de Foe uma espécie de precursor do Robinson Crusoé de Defoe, ou ainda, um rascunho, um relatório do material bruto (e descartado) recebido e utilizado pelo autor. São essas diferenças entre o Cruso apático e o Crusoé civilizador que marcam a passagem do material bruto para o romance canônico de Defoe tal como o conhecemos. E mais, são esses mesmos detalhes que dão ensejo às várias reflexões sobre o ofício do(a) escritor(a) presentes em Foe, feitas através não apenas do relato de Susan Barton na condição de testemunha e sobrevivente, mas de seus diálogos com o autor do futuro livro Robinson Crusoé, que no romance de Coetzee é chamado apenas de Foe (Defoe acrescentou o “De” ao seu nome de família com a intenção de reivindicar certo ar aristocrata).

Na versão de Coetzee (“todas as versões pertencem ao mito”, já dizia Lévi-Strauss na Antropologia estrutural), foi Susan Barton quem deu a Daniel Defoe a história de Robinson Crusoé – e não apenas deste romance, já que a Susan de Coetzee guarda uma série de semelhanças com a Susan de outro romance de Defoe, Roxana, de 1724. O que acompanhamos em Foe é a o relato de Susan a partir de dois registros simultâneos: ela conta os fatos e procura estabelecer também um método documental de escrita, para que sua vivência não seja “traída” pela transformação ficcional de Foe, o autor, o escritor profissional que ela busca após seu regresso a Londres.

“A história que desejo que seja conhecida é a história da ilha”, diz Susan a Foe. “O senhor a considera um episódio, mas eu a considero uma história em si mesma. Ela começa quando sou lançada lá pelo mar e termina com a morte de Cruso e a minha volta e a de Sexta-feira à Inglaterra, cheia de nova esperança”. Não se trata apenas de uma origem da história que Coetzee imaginativamente resgata e faz justiça; é também um debate sobre o ato de escrever em um momento histórico no qual o romance se transformava (na obra de Defoe, Swift, Sterne, Henry Fielding, entre outros).

“Uma vez”, continua Susan, “o senhor propôs acrescentar um meio inventando canibais e piratas. Isso eu não aceitei porque não correspondia à verdade”. Retornamos ao embate entre o Cruso apático de Susan Barton e o Crusoé civilizador de Daniel Defoe, com seus “canibais e piratas” que não correspondem à “verdade”. Além disso, e mais sutilmente, encontramos na fala de Susan também um vislumbre de como será o romance futuro, Robinson Crusoé, que no presente da narrativa não existe, mas já está sendo elaborado nesse confronto entre a voz da testemunha e a voz do autor.

A verdade, no entanto, habita uma zona cinzenta, como sabe a própria Susan, que antes havia escrito a Foe: “Devolva a mim a substância que eu perdi, sr. Foe: esse é o meu pedido. Pois, embora minha história forneça a verdade, ela não fornece a substância da verdade (vejo isso claramente, não precisamos fingir que não)”. A “substância da verdade” corresponde à passagem de Cruso a Crusoé, uma transição cujos rastros são os detalhes que Defoe – imaginativamente, como faz Coetzee em Foe – incorpora ao testemunho direto de Susan Barton.

Em Elizabeth Costello, de 2003, Coetzee retoma alguns pontos abordados em Foe: a voz feminina, a leitura da tradição, Daniel Defoe e o confronto entre “verdade” e “substância da verdade”, que no livro em questão recebe o nome de “realismo”. Costello, uma sorte de Susan Barton rediviva que de fato se torna “autora”, deve sua fama a um livro estruturalmente semelhante a Foe: seu título é A casa da rua Eccles, e reconta parte da história do Ulisses de James Joyce pela perspectiva de Molly Bloom (a esposa adúltera do protagonista, Leopold Bloom).

O primeiro dos oito capítulos de Elizabeth Costello – chamados de “palestras” – chama-se “Realismo”. Um narrador onisciente apresenta Costello: “O tailleur azul, o cabelo oleoso são detalhes, sinais de um moderado realismo. Fornece os pormenores, permite que os significados aflorem por si mesmos. Processo inaugurado por Daniel Defoe. Robinson Crusoe, naufragado na praia, procura em torno os companheiros de navio. Mas não há nenhum. ‘Nunca mais os vi, nem sinal deles’, diz, ‘a não ser três chapéus, um boné, e dois sapatos que não eram parceiros’. Dois sapatos, não parceiros: não sendo parceiros, os sapatos deixaram de ser calçados, passaram a ser prova da morte, arrancados dos pés dos afogados pelos mares espumosos, e atirados à praia. Nenhuma grande palavra, nenhum desespero, apenas chapéus, boné, sapatos”.

A junção de Costello e Foe leva a um ponto central da poética de Coetzee: a variação das regras de canonicidade ao longo da história, ou seja, a variação dos elementos que determinam a aceitação ou não dos textos ao longo do tempo. O Cruso de Coetzee é uma figura apagada, um coadjuvante no relato convincente e seguro de Susan Barton. Sendo Susan e Cruso figuras análogas – pois para que um deles fale, é preciso que o outro se cale –, o elemento que escapará da equação da canonicidade será esse terceiro silencioso/silenciado, Sexta-feira, o homem negro que teve a língua cortada.

Há uma força complementar agindo na reivindicação de autoria de Susan Barton diante de Foe, mas se trata de uma força difusa, indireta: a própria presença de Sexta-feira, cujo relato não passa pelas palavras. Seria Sexta-feira, então, a verdadeira testemunha do naufrágio, essa testemunha (testis) que é o terceiro (terstis) atravessado no “litígio entre dois contendores”, como escreve Giorgio Agamben em O que resta de Auschwitz? O silêncio de Sexta-feira é o único aspecto da vida na ilha que Susan não consegue decifrar e, consequentemente, não consegue absorver no projeto de verdade que oferece a Foe.

O mistério acerca do silêncio de Sexta-feira percorre todo o romance, desde as primeiras páginas, quando Susan tem suas primeiras conversas com Cruso, até o último parágrafo, quando a narração – já não mais de Susan, mas de um narrador não especificado que surge na breve seção final – investiga a boca aberta de Sexta-feira. “Os negreiros cortaram a língua dele e o venderam como escravo?”, pergunta Susan a Cruso, que responde: “Talvez os negreiros, que são mouros, tenham a língua na conta de uma iguaria”, ou “talvez tenham se cansado de ouvir Sexta-feira choramingar de tristeza dia e noite. Talvez quisessem impedir que ele algum dia contasse sua história: quem ele era, onde ficava sua casa, em que circunstâncias foi pego. Talvez eles cortassem a língua de todo canibal que pegavam, como castigo. Como poderemos saber a verdade?”.

A “verdade” retorna, agora pelas mãos de Cruso. Para ele, a “verdade” de Sexta-feira é essa história pregressa incerta – pertence ao antes da ilha. Para Susan, a “verdade” de Sexta-feira deve ser uma corroboração da sua, da história da ilha. “Todos os meus esforços para conduzir Sexta-feira à fala, ou conduzir a fala a Sexta-feira, falharam”, diz ela a Foe. “Ele só se expressa em música e dança, que estão para a fala como gritos e berros para as palavras”. A resposta de Foe é sintomática e reveladora: “Você mostrou a escrita a ele?”. Algum tempo depois, é isso que Susan tenta fazer, mas com resultados diversos do que esperava.

Nem fala, nem escrita, portanto, abarcam essa experiência de Sexta-feira – e, consequentemente, a própria experiência (de escrita e leitura) de Foe. Esse silêncio irredutível, essa experiência que recusa a ser contada, que não corresponde aos modelos de compreensão correntes (fala, escrita), é o elemento que Coetzee utiliza para romper a dicotomia Susan versus Foe e lançar um ponto de fuga possível para a narrativa. “A verdadeira história não será ouvida”, diz Foe a Susan, “até que por nosso próprio engenho encontremos um meio de dar voz a Sexta-feira”.

Em Foe, não há uma “verdadeira história” a ser ouvida, justamente porque Coetzee reconhece a violência intrínseca a esse gesto de usar “nosso próprio engenho” para “dar voz” ao outro. Temos acesso apenas a essa “substância da verdade”, instável, amorfa. O próprio Foe anuncia um pouco dessa consciência quando diz a Susan Barton: “Deploramos o barbarismo de quem quer que o tenha mutilado, mas não temos nós, seus últimos senhores, razão para estarmos secretamente agradecidos? Pois enquanto ele for mudo podemos dizer a nós mesmos que seus desejos são desconhecidos para nós, e continuar a usá-lo como quisermos”. A inflexão dada por Coetzee é sutil, mas decisiva: a mudez já não é um recipiente vazio, passivo, dado ao uso “como quisermos”; torna-se, ao contrário, um enigma, signo de algo que resiste, que estará sempre alheio aos desejos de dominação, de controle e de contenção das possibilidades de significar.