Piglia MAI A

DIA 30 DE MARÇO, QUARTA-FEIRA
Finalmente, assisto ao filme de Andrés Di Tella sobre os míticos diários de Ricardo Piglia. 327 Cadernos estreou em setembro do ano passado, logo que cheguei a Buenos Aires, mas voltou a passar essa semana no Cine Gaumont. Em abril, o documentário estreou na competitiva internacional do É tudo verdade. Minhas primeiras impressões: acho esperto e delicado como o diretor problematiza questões de alteridade, memória, ficcionalização do real e os modos como a história (o público) nos afeta como indivíduos (o privado). Conceitos que também atravessam a obra de Piglia. “Às vezes - e isso é um segredo - tenho a fantasia de publicar estes diários como os diários de Emilio Renzi. Dar minha vida a um personagem que construí em meus livros. Não sei se terei coragem”, reflete o autor, tomando “ao vivo” a decisão editorial que depois leva a cabo. Usar imagens de arquivo de anônimos para narrar a leitura de um diário assinado por seu alter ego, portanto, me parece uma solução perfeita. É como se a autoria não importasse, e, justamente, é o que mais importa. “A autobiografia como colagem (de outras autobiografias)”, lê-se na caligrafia do escritor. Ressignificar imagens alheias, como fez Di Tella, tem o mesmo peso de atribuir a própria vida a um personagem, como fez Piglia. No fim, o documentário adquire uma forma e uma poética similar à de seu tema, transformando-se no diário cinematográfico de um diário literário. Saio do cinema e ainda é dia. Um café cortado enquanto rumino o filme e uma tostada.

DIA 4 DE ABRIL, SEGUNDA
Ofereço ao Suplemento Pernambuco uma pauta sobre 327 Cadernos. Parece que conseguimos espaço na edição de maio. Tenho anotações soltas, mas pretendo rever o filme, entrevistar o diretor e, se der, ler Anos de formação, o primeiro volume dos diários publicados. Essa história começa quando o autor de Respiração artificial tem 16 anos e é forçado a deixar Adrogué para viver com a família em Mar del Plata. O pai, peronista, era perseguido por defender o general em 1955, e a mudança se dá meio clandestinamente. “Naqueles dias, em meio à debandada, em um dos aposentos desmantelados da casa, comecei a escrever um diário”, conta, no filme. Piglia se manteve fiel ao hábito por mais de meio século. Em 2011, quando planeja voltar à Argentina após 15 anos lecionando em Princeton, Estados Unidos, decide olhar pela primeira vez para o conjunto desse material, encaixotado em 40 caixas de papelão. Afirma que são 327 cadernos, mas nunca os contou. Nada mais pigliano que dizer a verdade a partir de uma mentira - ou o contrário.

DIA 5 DE ABRIL, TERÇA
Descubro que os filmes anteriores de Di Tella estão disponíveis na íntegra no Vimeo. Assisto à sua cinebiografia sobre Macedonio Fernández, narrada justamente por Ricardo Piglia, quem percorre galerias subterrâneas, cafés e outras geografias macedonianas, reais ou imaginárias. Curioso é que Macedonio, assim como Piglia (e Di Tella), também utiliza o método dos cadernos-diário para compor sua obra-prima, Museu do Romance da Eterna (no Brasil, editado pela já saudosa Cosac Naify). “Um romance que é ao mesmo tempo diário pessoal, tratado sobre a arte, plano de vida e uma experiência do irreal em sua forma mais perfeita”, define, em voz off. “Ler Macedonio é ler sobre o futuro”, diz, enquanto Di Tella encerra o documental com o mesmo travelling in com que começa (só que agora não mais em reverse), criando uma ponte entre passado e futuro. Em alguma medida, Piglia também fala de si quando fala de Macedonio Fernández.

DIA 7 DE ABRIL, QUINTA
Buenos Aires tem cerca de 470 livrarias, mas nenhuma parece ter à pronta entrega o primeiro tomo de Os diários de Emilio Renzi. “Esgotado na editora”, me dizem os livreiros. Como pode, se saiu há poucos meses e ganhou logo a chancela de livro do ano na Argentina? Vou até a Biblioteca Nacional. Os elevadores e paredes do edifício estão cobertos de cartazes exigindo a reincorporação dos 240 funcionários demitidos pelo presidente Mauricio Macri. “Não sobram trabalhadores, faltam políticas públicas”, lê-se num deles. No quinto andar, a atendente diz que a biblioteca pode levar até três anos para adquirir um novo título – prazo que converte qualquer lançamento em velharia. Por sorte, encontro no catálogo um livro fino de capa dura intitulado Fragmentos de un diário. Foi lançado pela Galeria Jorge Mara - La Ruche em 2012 e acompanha imagens do artista plástico Eduardo Stupía.

Eis uma passagem interessante:

“Quinta-feira
Depois de tantos anos escrevendo nesses cadernos comecei a me perguntar em que tempo de verbo devo situar os acontecimentos. Um diário registra os fatos enquanto acontecem, não os recorda nem os organiza narrativamente. Tende à linguagem privada, ao idioleto. Por isso, quando alguém lê um diário, encontra blocos de existência, sempre no presente, e só a leitura permite reconstruir a história que corre invisível ao longo dos anos. Porém, os diários aspiram ao relato, e neste sentido estão escritos para ser lidos (embora ninguém os leia).”

Os trechos são todos saborosos. Fico lendo até a biblioteca fechar, à meia-noite. Um luxo, uma biblioteca aberta até a meia-noite.


8 DE ABRIL, SEXTA
Escrevo para Andrés Di Tella com um pedido de entrevista. Fico sabendo que está em Cuba, com pouco acesso à internet, e que terei de esperar até semana que vem. O editor de Pernambuco me dá um tiquinho mais de prazo.

10 DE ABRIL, DOMINGO
Não para de chover em Buenos Aires. Fico em casa tomando vinho e relendo o ensaio O documentário e eu, assinado por Di Tella e incluído no livro O cinema do real (Cosac Naify, 2005). Em dado momento, ele cita o documentarista Nick Broomfield para falar de atuação como o oposto de falsificação. “O que ele faz se exibindo e contando seus problemas é uma forma transparente de prestar contas, uma atitude mais honesta e talvez a mais acreditável.” Para Di Tella, Broomfield mostra o que os documentaristas costumam esconder, ou seja, fracassos. “Seus documentários tornam-se um manual de tudo aquilo que não deveria haver num documentário.” Penso se não será também um fracasso meu não conseguir o livro de Piglia e a entrevista exclusiva com Di Tella. No Vimeo, assisto ao seu documentário Hachazos e tenho uma aula sobre fracassos, franquezas e escancaramento de um processo narrativo em curso. À noite, saio para comprar ibuprofeno e medialunas.

11 DE ABRIL, SEGUNDA
Revejo 327 Cadernos, agora na tela do computador, com senha enviada pela produtora Gema Films. É interessante quando Piglia diz que só há restos no diário e Di Tella constrói uma narrativa com descartes de noticiários antigos. O desimportante se torna essencial, significativo. Há ainda essa transferência de tempos - passado, presente -, de geografias - Buenos Aires, Princeton, Mar del Plata, Adrogué - e de narradores - Di Tella, Piglia, alguns amigos do núcleo mais íntimo do escritor. Um palimpsesto polifônico tremendo, esse filme.

DIA 12 DE ABRIL, TERÇA
Minha amiga jornalista Malena Rey, que escreve para a revista Inrokuptibles, me empresta Os diários de Emilio Renzi. Agradeço com um pacote de café brasileiro que perfuma minha mochila. Malena conta que um incêndio destruiu recentemente o depósito da Anagrama, editora do livro. Agora entendo a dificuldade de encontrá-lo nas livrarias portenhas. Curioso é que Piglia aparece incinerando um dos diários no filme, as chamas refletidas nos óculos redondos de aro preto, o riso irônico no canto da boca. Profético.

13 DE ABRIL, QUARTA
Converso quase uma hora com Andrés Di Tella por Skype. Pergunto sobre a construção imagética do filme. Ele conta que os cadernos do autor eram recheados de papeizinhos: uma foto, um recorte de jornal, o canhoto de um guarda-móveis. Cada um com uma história por trás. “O que fiz foi buscar um equivalente no audiovisual para reproduzir essa espécie de caos.” Uma sequência mostra um halterofilista deixando-se atropelar por um caminhão, uma menina de maiô brincando num balanço, uma nave espacial de um filme em preto e branco. “O que busco? Lembranças alheias. Metáforas da memória”, me diz.

Usar imagens anônimas como ilustração da vida de Piglia (ou de Renzi) corrobora o discurso da alteridade. Andrés filmava seu próprio diário cinematográfico, quando surgiu a ideia de filmar os do escritor, dando um novo rumo ao projeto. “Somos todos fantasmas para nós mesmos. Às vezes é mais fácil olhar-se no espelho do outro do que no próprio”, reflete.

Em Buenos Aires, Andrés ministra uma oficina de documentarismo intitulada Caderno de Anotações. Pergunto sobre a função desse objeto como laboratório criativo. Ele garante que só o mecanismo de sentar com alguma constância para escrever “já te tira um monte de coisas que de outro modo não sairiam”. “Um caderno tem algo mágico, não importa tanto o que você escreve, mas o momento compartilhado com ele.” Para além do método, Andrés valoriza o caderninho também como forma: um texto com total liberdade, sem obrigação de estrutura, inconcluso, escrito no presente. “Fui percebendo que meus próprios trabalhos conservam esse elemento, como se fossem um caderno de anotações de um filme, em que aparecem os rastros do processo. Me interessa dar a sensação de que o filme está sendo feito ao mesmo tempo que você o está assistindo. O desafio é dar essa experiência de diário, mas com uma estrutura narrativa forte por trás, uma viagem emocional”, diz.

Conversamos sobre a cena do caderno em chamas, que descubro ter sido ideia de Piglia.
No filme, ele diz que, se um autor não deseja publicar algo, a única saída é queimá-lo. Queimar e publicar parecem gestos contraditórios, mas não, se pensarmos que Piglia vê o próprio diário como o material bruto de sua obra, a partir do qual pode experimentar, editar, cortar, incluir novas cenas, mudar o ponto de vista. O fogo, então, simbolizaria seu desejo de manter algum mistério quanto à natureza do texto manuscrito (o que estava originalmente nos diários?, o que entrou depois?, como se o artifício não fosse, à sua maneira, também uma verdade.)

Dividir o filme em duas partes foi uma decisão estética para marcar o antes e o depois do diagnóstico da doença de Piglia (Esclerose Lateral Amiotrófica), recebido durante as filmagens. Di Tella conta que, na segunda parte, o escritor começa a experimentar com o texto, passando-o para a terceira pessoa, e o teor das imagens de arquivo acompanha essa mudança. “Elas passam a descolar do que ele narra, ficando mais arbitrárias e plenamente metafóricas, até culminar com esse plano dos cachorros caindo de paraquedas na Antártida.”

Enquanto me explica o trabalho sonoro de Felipe Otondo - pontuado por sons de sinos que carregam ainda mais o filme de um sentido temporal -, percebo que, durante toda a entrevista por Skype, ouço notas musicais de fundo. “É meu filho Rocco ensaiando no piano”, revela. No andar de baixo do apartamento em que estou, alguém toca o mesmo instrumento, criando uma sincronicidade absolutamente imprevista.

14 DE ABRIL, QUINTA
Por fim, há sol, mas passo o dia sem sair de casa, mergulhada nas 360 páginas de Os diários de Emilio Renzi. Anos de formação se concentram na primeira década de escritura do diário, começando numa quarta-feira de 1957 e terminando numa terça de 1967, ano de sua estreia literária. A obra intercala pequenos ensaios, o diário em primeira pessoa e trechos em terceira, com o narrador contando o que teria ouvido de Emilio Renzi certa tarde em um bar na esquina da Arenales com a Riobamba. Há recortes da vida pública argentina (a queda de Perón, a notícia da morte de Che Guevara num dia chuvoso), fundindo-se à sua vida mais íntima (“comprar pasta de dentes, carga de caneta e um caderno preto”). Estão lá as primeiras vivências políticas, amorosas, cinéfilas (“o cinema é mais rápido que a vida, a literatura é mais lenta”), intelectuais, literárias. Mas seria um erro ler Os diários como mera autobiografia. Porque, como diz no sugestivo texto intitulado Quien dice yo (Quem diz eu), ao final do livro, “já não se trata da experiência vivida, mas da comunicação dessa experiência, e a lógica que estrutura os fatos não é a da sinceridade, mas da linguagem”.

15 DE ABRIL, SEXTA
Uma frase de Piglia (assinada por Emilio Renzi): “Não existe procedimento narrativo que não seja artificial, que não se imponha à linguagem cotidiana com seu uso inusual”. Penso que uma reportagem também pode ser um procedimento narrativo - logo, um artifício. Depois de duas semanas de trabalho, envio ao editor um texto que ainda não sei o que é - mas que não terei coragem de assinar com um alter ego.

Olho minhas olheiras no espelho, passo um café bem forte e saio (chove, como sempre) para comprar um caderno novo.