“Somente ela e eu sabíamos escrever daquele jeito”. A implicação do “ela e eu” como duas pessoas cujos modos de pensar (e, portanto, de escrever) se tornam uma coisa só, é uma linha muito fina tensionada ao máximo durante todo o livro. Fala-se aqui do segundo romance da chamada “série napolitana”, a tetralogia centrada nessa pessoa que são duas: Lila e Lenu. História do novo sobrenome (Biblioteca Azul/Globo Livros) é o título que dá sequência à Amiga genial, e nas suas 470 páginas, lemos sobre o ocaso do verão, aquele momento em que a brisa fria sopra inadvertidamente e as cadeiras de praia são recolhidas, o guarda-sol é fechado e os corpos são contraídos.
Lila e Lenu vivem, ora indivisíveis, ora distantes, esse momento em que se reconhece que, na verdade, nunca houve verão. Mas como mulheres que são dentro de um contexto que subjuga suas mentes e corpos, acreditar no verão é um ato de resistência. A saga de Ferrante é, portanto, uma ação de defesa e combate. A muitas coisas, sendo o machismo um dos mais centrais inimigos.
Se na Amiga genial elas, ainda crianças e adolescentes, não dispunham de muitos meios para fugir da violência difusa numa Nápoles pós-Segunda Guerra Mundial, em História do novo sobrenome elas, agora jovens mulheres, procuram essa via de saída a qualquer custo, o que também implica uma fuga entre elas mesmas. À primeira vista, Lila sabe ser cruel, Lenu sabe ser vítima, mas essas máscaras caem com muita facilidade. O fato é que todo atrito e inimizade que surge entre as duas é testemunho apenas da cumplicidade que ambas criaram ao longo dos anos. Elas se ferem na mesma medida que se protegem.
Se isso já se fazia claro no primeiro livro, nesse segundo romance se torna ainda mais latente. Afinal, para além dos rancores entre as duas, existem os homens lá fora, maridos, namorados, pais e irmãos, quase todos educados nas melhores escolas do patriarcado. Ambas reagem a essa paisagem com diferentes tipos de violência. Lila faz isso para fora, ferindo todos ao redor (incluindo ela mesma), e Lenu, a narradora, faz para dentro, sublimando a dor com literatura.
Nesse arco que começa com uma ruptura e se encerra com uma potente conciliação, a narrativa mais uma vez parte do tempo presente - toda a história é um flashback - em que o fantasma da amiga (a lembrar que o primeiro livro só acontece porque Lila, já senhora, desaparece) surge novamente. Elena/Lenu mais uma vez escreve, ora em primeira pessoa, ora suspensa em um tipo de narração omnisciente, o que se passou naquele verão em que ela, solteira, e sua amiga, casada, se apaixonaram pelo mesmo homem.
Mas esse é um relato marcado por uma entidade maior que as personagens. Para escrever sobre mecanismos de defesa, Ferrante faz uma narrativa deliciosamente novelesca, quase como uma atualização politizada de Jane Austen, e cria uma mulher conceitual que se funde nas suas protagonistas: “de repente, o que eu tinha tirado dela me pareceu muito mais do que ela jamais pôde tirar de mim”.