Em sua estreia, Alexandre Furtado se perde por um Recife de ontem e de hoje
O Recife é como time de futebol, partido político, um flerte fatal: Ame-o ou deixe-o. Nem menos nem mais. Ainda que seja incondicional, esse amor não é cego (apesar da vocação para guia). Quem ama o Recife, encara suas mazelas, sim. Mas procura ressaltar a beleza, história e cultura que justificam esse sentimento, que mistura a saudade do passado da cidade - com suas maxambombas, casa-navio, histórias de assombração e sobrados que deram lugar a avenidas e edifícios -, com o presente engarrafado. O poeta, crítico e contista Alexandre Furtado é um desses amantes.
No seu livro de estreia, De ruas e inti-nerários, ele lança um olhar sobre a cidade, destacando mudanças cronológicas e peculiaridades do cotidiano, com a intimidade de quem conhece a vida que pulsa nos becos. Em entrevista ao Pernambuco, o autor explicou a nostalgia, a estranha nostalgia, que sente de um Recife que nem bem chegou a conhecer:“Talvez seja pelas referências anteriores, pelas leituras e vivências com gente mais velha. Trago certa nostalgia e não vejo problema nisso, mas não é coisa de apego, melancolia derramada, muito menos achar que tudo no passado era melhor, como se as coisas de hoje fossem absolutamente péssimas”.
As mudanças velozes, que transformaram a face urbana, levaram o poeta a registrar o passado e o presente da cidade, como um esforço derradeiro de preservar uma memória em extinção. “Vivemos uma contemporaneidade cheia de contradições, sem muito tempo para digeri-las. E o mais chocante é que certas referências urbanas desaparecem em muito pouco tempo, a cidade se transforma, e com ela nosso olhar, como se fosse um deslocamento. Quando se vê, aquela casa está abaixo, em seu lugar, um prédio de 30 andares...Desaparecem coisas que faziam parte de sua história, do imaginário local, coisas que nos lembram de nós mesmos. Enfim, quando se percebe, a identidade urbana está completamente mudada, a gente não se reconhece na cidade como antes. Possivelmente, há um desejo inconsciente em registrar o que havia...além de querer chamar atenção para um desaparecimento rápido demais...de querer informar que houve outro Recife, atropelado por uma verticalização sem medida, asfalto pra cá, cimento pra lá, e sua história, suas ruas, ficaram à deriva.”
“Quem não se lembra da Livro 7? Do Bar Savoy? Do Colégio Marista? Do Nóbrega?... do Veleiro e do Maxime’s? Não são coisas tão distantes assim...a cidade incha, e esse modelo termina destruindo coisas belas, como dizia Caetano Veloso em Sampa... daí fico pensando, de forma prática, o que é pertencer? Onde começa e termina Pernambuco em mim? Mais ainda, como vem acontecendo o Recife nesses anos, e eu, como é que eu lido com a perda de algumas referências, essas lembranças tão recentes, ao andar pelas ruas da minha cidade?”, pergunta o poeta.
Professor universitário de literatura brasileira e inglesa, crítico literário, coordenador do Núcleo de Pesquisa da Fafire, colaborador de sites de poesia e contos, Furtado atribui a tantas atividades a demora em publicar, mas já trabalha em outro projeto, um livro de crônicas, que começou a nascer paralelamente a De ruas e inti-nerários, “pra variar tendo o Recife como espaço, essa cidade complexa, que me habita desde que nasci”.
O livro faz referências poéticas ao Recife dos anos 1970/1980, quando “se tinha o direito de admirar a lua cheia sem edifício alto para interromper a visão, os filmes eram no São Luís ou no Veneza. Tenho saudades do projeto Seis e Meia, do Espaço Pasárgada, lá na rua da União...”, mas também resgata lembranças imateriais, principalmente os cheiros e sons ligados aos bairros da cidade, como nos poemas “Aflitos”, “Ubaias”, “Brisa de Apipucos” e “No fundo do Poço”, que traduzem as mudanças ocorridas nesses bairros, ou “Feira da Várzea”, em que remete ao cantar dos galos pela madrugada. Porém, nem sempre as lembranças são agradáveis, como quando falam dos mangues escuros e dos cheiros que lhe valeram a epígrafe de “recifede”.
Autores consagrados da literatura brasileira, que nasceram ou foram moradores do Recife, como Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Carlos Pena Filho, Joaquim Cardozo e Clarice Lispector, são lembrados por Furtado em alguns poemas, como “Do veras”, que lembra o conto Felicidade clandestina, de Clarice, que morou no bairro da Boa Vista, e “Do beco”, que traça um paralelo com o poema O bicho, de Manuel Bandeira, nascido em casarão da rua da União, que narra a degradante situação dos becos no entorno dos mercados e ruas da cidade, onde geralmente o lixo é o panorama mais comum.
O registro de Alexandre Furtado tenta reter na memória dos recifenses “esse Recife que era de poéticas evocações/ ...desencantado pelo descartável/ pelo relógio implacável/ marcando ultimamente/ suas horas/ finitas”.