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Sérgio Corrêa de Siqueira tem horror à palavra polêmica, mas admite não ter medo de controvérsias. Conservador convicto e monarquista de carteirinha, o vencedor do Prêmio Nacional Cepe de Literatura já foi engenheiro de minas e promotor de Justiça. Aposentado das duas carreiras, agora busca se estabelecer como escritor enquanto cuida da fazenda herdada de seu pai, no interior de Minas Gerais. Seu inédito O grande massacre das vacas, escolhido na categoria romance, será lançado em abril pela Cepe Editora. Diferente da maior parte dos escritores brasileiros contemporâneos, Sérgio passa longe do debate social, da autoficção ou mesmo de uma leve introspecção. O que entrega ao leitor é um livro de aventura, construído a partir de um episódio pouco conhecido da história brasileira.

Em 1955, o pecuarista mineiro José Roberto Rodrigues da Cunha peitou as autoridades sanitárias e trouxe da Índia um lote de gado zebu na intenção de melhorar a genética do rebanho nacional. A partir desse episódio, Sérgio constrói uma narrativa ágil, que viaja habilmente do pantanal profundo à Índia, da Ásia portuguesa aos gabinetes da República. Enquanto passeia entre um mundo exótico e outro primitivo, o livro evoca valores como coragem, honra e patriotismo, que refletem o pensamento do autor.

Nesse trabalho, quase um romance histórico, o pecuarista real é substituído por três primos jovens da cidade de Uberaba. José Ricardo, José Francisco e José Marcelo abandonam os estudos e para se estabelecer como criadores de gado sem a ajuda dos pais. Enquanto buscam reprodutores para iniciar seu rebanho, observam que aquela geração de zebus brasileiros já não corresponde às características originais da raça, em função dos sucessivos cruzamentos na mesma população. Decidem então embarcar para buscar novas matrizes no país de origem da raça – a mítica Índia, então recém-libertada do domínio inglês.

O que encontram é uma ex-colônia decadente, em que os resquícios da presença inglesa ainda se fazem sentir nos hábitos e organização burocrática; mas onde já surgem desordenação e abandono. Para encontrar o que precisam em um país que não entendem, os primos contam com a ajuda de um marujo moçambicano e, depois, de um guia goense. A histórica presença lusófona na Ásia, aliás, é uma boa estratégia de ligação entre os dois mundos, o que torna o romance incrivelmente verossímil.
O personagem de Goa é um guia também para o leitor nos hábitos culturais dessa Índia em processo de reestruturação. É ele quem comanda as negociações para compra de gado com um marajá falido, mas que, no entanto, não pode vender suas sagradas vacas numa transação meramente mercantilista. Todo um teatro se desenvolve até que a venda esteja fechada; um teatro que envolve práticas tradicionais de sociabilização da nobreza indiana já bastante influenciadas pelas décadas de dominação britânica; e às quais o leitor tem acesso em um enredo divertido e bem-amarrado.

O autor adquiriu as informações sobre a criação de gado com a própria experiência na fazenda da família. Sobre o episódio real que tomou de empréstimo para seu romance, não quis saber quase nada, preferindo a liberdade da criação literária sem as amarras da história. Já a ambientação da Índia e da Uberaba dos anos 1950, diz, foram objeto de pesquisa intensa.

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O grande massacre das vacas cita autores ingleses importantes para formação de Sérgio Corrêa de Siqueira, como Joseph Rudyard Kipling (1865-1936), primeiro Nobel de Literatura britânico (1907), ele próprio nascido na Índia, de pais anglo-indianos. É em seu O livro da selva que surge o personagem Máugli (ou Mogli), o menino lobo, depois popularizado pelos desenhos animados da Disney. Kipling foi considerado porta-voz do império britânico e algumas vezes criticado pelo militarismo presente em sua obra.

Outros escritores referenciados no romance são o inglês Patrick O’Brien (1914-2000), autor de uma série de histórias navais que se desenrolam durante as guerras napoleônicas, tendo como personagem principal o capitão Jack Aubrey; e Cecil Scott Forester (1899-1966), britânico nascido no Egito, autor de vários contos com temas militares. É dele também a série de livros de aventura cujo protagonista é o capitão Horatio Hornblower.

Não por acaso, o antagonista de O grande massacre das vacas é o capitão de corveta que foi nominado Horácio Aubrey Trombeteiro (Hornblower em português), numa homenagem do autor a dois personagens queridos.

É ele, aliás, o primeiro a aparecer no romance do Sérgio Corrêa de Siqueira. O grande massacre das vacas tem início no pantanal matogrossense, com o encouraçado fluvial Parnamirim ancorado no lado brasileiro do Rio Paraguai, na fronteira com a Bolívia. Do convés, o capitão Trombeteiro observa de binóculos um rebanho de vacas indianas pastando do lado boliviano – chegaram lá subindo pelos rios da Prata e Paraguai, evitando entrar em águas brasileiras para evitar a fiscalização.

A missão de Trombeteiro, há dois meses, é não deixá-las entrar no país, mas, ao mesmo tempo, não causar um incidente diplomático com as autoridades bolivianas. O capitão desconhece os motivos da ordem e, enquanto toreia sua impaciente tripulação, tenta bolar uma maneira de sair do impasse sem constranger a Marinha. No meio do nada, o contato com os pecuaristas mineiros do outro lado da margem torna-se inevitável e até amigável. O duelo que se desenvolve é entre partes honradas, que desejam apenas fazer o que julgam certo. Esse é um ponto central do livro.

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Como o livro logo revela, os aventureiros de Uberaba não contavam que sua incursão à Índia virasse uma questão política. Assim como o pecuarista real, os Josés imaginados por Sérgio Corrêa de Siqueira foram barrados na fronteira do país por interesses econômicos e políticos particulares: os pecuaristas paulistas dos anos 1950 não queriam ver concorrência aos seus rebanhos de origem europeia. Os criadores mineiros, por sua vez, buscavam o monopólio da criação e reprodução de zebus. A chegada das nelore, gir e guzerá trazidas diretamente da Índia ameaçam os interesses de ambos os lados da política do café com leite. É aí que interesses de poucos viram, nebulosamente, uma questão de segurança nacional.

“A obra trata de um tema desconhecido – e aparentemente secundário – da história brasileira, mas que revela muito daquilo que se denomina de Brasil profundo. No caso, o transigir entre o público e o privado: seja no campo dos negócios e da política, seja nas relações de amizade”, comenta o professor de pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Anco Márcio Tenório Vieira, um dos integrantes da comissão julgadora do Prêmio Cepe.

O escritor Luiz Henrique Pellanda, outro membro do júri, concorda: “A opção do autor pelo tratamento ficcional, livre, dada a um fato histórico praticamente desconhecido entre nós, só fez melhorar o enredo e ampliar as possibilidades de, a partir dele, discutirmos o absurdo de nossa trajetória política e cultural”.

O imbróglio entre os Josés chegando com o gado indiano e o comandante Trombeteiro tentando impedi-los de entrar no Brasil é mediado pela relação de cavalheirismo entre os dois lados. Embora em margens (literalmente) opostas, os personagens buscam a solução que julgam a melhor para o país. Por e-mail, pergunto a Sérgio Corrêa de Siqueira se a questão do patriotismo em seu livro é consciente ou inconsciente; se com isso tinha a intenção de fazer um comentário sobre o Brasil atual.

– “Proposital? No sentido de que eu me sentei para escrever um romance sobre patriotismo, não. Mas o patriotismo certamente andava na minha cabeça quando escrevi. (...) O patriotismo diminuiu por causa de golpes dos dois lados: na direita, a utopia globalista, à esquerda, um bloco internacionalista que sonhava com a Pátria Grande Bolivariana. (...) Quanto ao patriotismo dos personagens d’O grande massacre das vacas, tentei fazer uma coisa convergente, dois pontos de vista opostos: cada qual interessado em sua carreira profissional, mas não inteiramente avesso a se curvar a uma ideia maior, pelo bem da pátria.”

Pergunto também de onde veio seu monarquismo declarado (constitucionalista, frisa). Sérgio me conta que se formou em Engenharia de Minas em Cambridge, Reino Unido, aonde “chegou vermelhinho”, segundo suas palavras, nos anos do governo da primeira-ministra Margareth Thatcher (1925-2013).

- “E, durante dois anos, eu não vi só a situação das pessoas melhorar – no governo Thatcher, o número de casas próprias, por exemplo, decuplicou –, como fui me educando ideologicamente.(...) Quando voltei ao Brasil, já era quase monarquista, e depois de estudar um pouco de História, fiquei de vez. (…) Por que acho que a monarquia funciona? Porque a maioria dos reis foi educada para ser chefe de estado e funcionar como âncora nos momentos de crise. (…) Monarquia no Brasil? Agora, eu mesmo acho utópico, mas nunca se sabe: no plebiscito de 93, a Monarquia teve 15% dos votos, sem dinheiro e quase sem campanha.”

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Comento também que seu livro difere bastante dos de outros autores contemporâneos, que exploram temas eminentemente sociais ou intimistas, num questionamento praticamente coletivo sobre a condição humana. Penso, mas não registro, e mesmo assim ele comenta: sua linguagem é clara, direta, sem pretensões. Seus escritores preferidos são James Joyce, Machado de Assis, João Guimarães Rosa, Gilberto Freyre, Shakespeare, Camões, George Orwell, Jorge Luis Borges. Por outro lado, diz, aprecia os escritores que são bons artífices, ainda que considerados menores.

- “Reconheço meus limites, e minha incapacidade. (…) Eu só quero narrar uma boa história, ou, como diz um amigo, spin a good yarn. (…) Acho que, se algum dia escrevesse um romance intimista, meu personagem se suicidaria no segundo capítulo. Portanto, prefiro escrever sobre aventura, que é o que nos faz sentir vivos, justamente porque a vida está em risco”.

Como metáfora, a expressão em inglês spin a yarn significa “contar uma longa história”; literalmente, é trabalhar a lã em estado bruto numa roca para fabricar o fio, que depois será tecido, num processo totalmente artesanal.

Sérgio, portanto, se vê como um artesão de histórias.