O mundo estava pirado em 1975. Em plena Guerra Fria, o ano rumava para o o fim da Guerra do Vietnã, depois de 14 anos, com os EUA fingindo não serem os perdedores; Geisel orquestrava uma “redemocratização” que parecia nunca chegar, com o AI-5 ainda em vigor; Vladimir Herzog foi assassinado nos porões do DOI-CODI, mas disseram que foi suicídio; as colônias portuguesas na África se tornaram independentes; o MST nasce; Foucalt lançava Vigiar e Punir; Hannah Arendt morria; Pasolini lançava Salò ou os 120 anos de Sodoma. Pasolini era assassinado por fascistas italianos...
Enquanto isso, em Divinópolis, Adélia Prado lançava Bagagem. Quando 1975 chegou e o mundo pirava, Adélia, que tinha 40 anos, já estava escrevendo poemas há 25. Sim, estava tudo uma doidice, e enquanto isso essa respeitável senhora escrevia sobre seu corpo, seu corpo de dona-de-casa, seu corpo de dona-de-casa em sua casa, seu corpo de dona-de-casa em sua casa com uma fé.
Mas não era – nunca foi – só isso. Bagagem tem alguns dos poemas mais lindos da carreira da escritora e, ela, Adélia, da poesia em língua portuguesa contemporânea. Em dezembro de 2015, portanto, a Record lançou Poesia Reunida, que celebra seus os 80 anos – e, por conseguinte, o 40º aniversário do livro de estreia.
Ainda que tenha escrito algumas das coisas mais bonitas da nossa literatura, não é sem enorme reserva que a leio, porque sei que o seu poder de sedução deixa obnubilado meu senso crítico. Lê-la é um jogo, e um bastante perigoso, como sair para jantar com um sagitariano – você dá risada o tempo todo, é uma delícia, você termina a noite completamente apaixonada e só quando chega em casa é que percebe que não faz a menor ideia de quem é aquele boy.
Mas não seria assim – com reserva – que devemos ler todos os autores do mundo? Ou não, era pra ser com paixão e entrega? Não sei. Talvez exatamente por ser sagitariana é que Miss Prado nos presenteia com contradições tão suas – e tão nossas. Contradições que nos aproximam dela, pela sua doidice ou normalidade.
Por outro lado, há outros momentos, nos quais as contradições nos afastam dela, com aquele gosto amargo na boca de “miga, você não podia ter escrito isso”, como os de “Prodígios” (de A faca no peito, 1988): Bons tempos em que se matava/ a adúltera a pedradas. Ou ainda estes, que aparecem no excelente (meu preferido) livro O pelicano, de 1987: Teve nove filhos, sendo que/ tirante um que é homossexual/ e outro que mexe com drogas,/ os outros vão levando no normal (do poema “A esfinge”).
Essa diferenciação entre ela e um mundo que ela não curte muito é uma constante no mundo adeliano, e é nessa hora que eu levanto da mesa e digo: Adélia, xau. Mas o mais conflituoso enquanto li a Poesia Reunida não foram essas confrontações com o contexto do poema e suas implicações – mas sim durante a pesquisa para escrever esse texto, ler as análises e críticas feitas sobre a obra da autora.
Os indicadores de classe, raça e gênero, por exemplo, que aparecem tantas vezes nos poemas, quase nunca são problematizados (dariam belas análises, a meu ver). O que mais se fala em sua obra é do fato dela ser mãe, esposa, dona-de-casa, interiorana e que ainda assim escreve estes poemas. Estes adjetivos sempre vêm acompanhados de um tom de “uau”, um “uau” que é também bastante problemático (como se mães, esposas, donas-de-casa, pessoas nascidas fora das metrópoles não pudessem escrever bem).
Como a crítica brasileira era (é?) feita basicamente por homens brancos, urbanos, heterossexuais e de classe média, eles parecem ter abraçado sem nenhum grande questionamento aquilo que eu vejo como o calcanhar de Aquiles da obra adeliana, que é: ainda que ela fale de questões existenciais e místicas comuns a homens e mulheres, tais questões aparecem num contexto que é, mais do que doméstico, domesticado, confortável para o leitor que pode, assim, seguir elucubrando no plano da metafísica sem ser importunado com as questões práticas da vida da mulher contemporânea. A dona-de-casa fala desde dentro da casa, desde a cozinha, e todos ficam satisfeitos.
Affonso Romano de Sant’anna escreve, no prefácio da primeira edição de O coração disparado (1978), que “Adélia não usa uma linguagem de empréstimo aos homens (…). Está ali pisando no seu chão. Com um caderno de poesia ao lado do fogão”, como se nisso estivesse a grandiosidade da autora. Quando um crítico (ou um leitor) identifica apenas nisso suas linhas de força, diminui não somente a pluralidade da sua poesia e persona, como também ignora grandes poetas como Maya Angelou, Anne Sexton e Sylvia Plath (isso para ficar só nas poetas estadounidenses nascidas ali pelos anos 30, como Adélia), escritoras mulheres, donas-de-casa, que tematizavam o lar como o campo de batalha que de fato é.
Adélia sabe bem dessas guerras – talvez como só outra mulher possa entender. Talvez. Eu não sei. O bom de um livrão como esse é poder acompanhar muito de perto essas ondas nas obras de Adélia, navegar na maré de sedução e repulsa, de conforto e incômodo, que ela não cria, mas provoca.
Tenho certeza que ela veleja esses mares muito soberana, aceitando ela mesma suas contradições, entregando-se a elas, enquanto eu fico louca, arrancando os cabelos, com vontade de matar Adélia, de amar Adélia e de pedir desculpa toda vez que levanto da mesa. Porque ela, como boa sagitariana que é, me seduzirá todas as vezes que nos encontrarmos.
Pela não domesticação de Adélia
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- Categoria: Resenhas
- Escrito por Adelaide Ivánova. Ilustração: Hallina Beltrão