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Roberto levava uma vida relativamente tranquila. Na escola particular onde estudava, tirava notas medianas e, se estava longe de ser popular, ao menos ninguém o atormentava. Em casa, uma série de hipocrisias deixava o ambiente artificialmente agradável – o que todos ali consideravam o suficiente para que conseguissem fingir ser uma família feliz. As coisas só começaram a mudar quando o pai de Roberto morreu em um acidente de carro. Após uma breve turbulência por conta de burocracias, as finanças familiares se estabilizaram. No entanto, a perda jamais seria superada por Roberto. Dali em diante, tudo em sua vida teria a forte marca daquela ausência.
Roberto não “existe”. O arremedo mal delineado de personagem nasceu e morreu justamente no parágrafo acima apenas para servir como exemplo da trajetória comum a muitos outros na literatura brasileira contemporânea. Em maior ou menor escala, boa parte dos protagonistas criados pelos escritores nacionais atualmente – não todos, mas aqueles ficcionistas que costumam compor o grosso das programações de encontros literários, bienais e afins – levam uma vida parecida e reagem de maneira semelhante à tragédia familiar. Espelham os homens brancos de classe média que dominam nossas letras.

Excelente quando alguém rompe com esse tipo como Henrique Rodrigues faz em O próximo da fila. O livro apresenta a história de um jovem de classe média que leva uma vida confortável, mora em uma boa casa e estuda em uma escola particular. No entanto, após a morte de seu pai as coisas mudam. Passa a estudar em um colégio público e a mãe precisa arrumar um lugar muito mais modesto para viver. Por mais que o protagonista sinta a perda, a vida não permite que se retraia em seus sentimentos. O dinheiro anda escasso e o jovem precisa se virar, arrumar um emprego e ajudar todos ali a sobreviver. Onde encontra? No McDonald’s.
Apesar do nome da multinacional não ser mencionado no livro, fica evidente que boa parte da história se passa no ambiente familiar a Henrique, o escritor, cujo primeiro emprego foi exatamente em uma loja da rede, onde esteve à frente da chapa – ou do balcão – dos 15 aos 18 anos.

“Eu não tinha nada daquele acesso à leitura que depois vai transformar a pessoa em escritor, aquela história de pai e mãe que adoravam ler. Meus parentes não leem meus livros, não compram, e, quando compram, acham que estão fazendo um favor. A literatura brasileira é escrita tradicionalmente por uma classe média, um pessoal que teve uma boa base de leitura, e isso também se reflete nas histórias que são escritas. Muito recentemente que surgiu o marginal, a voz dos excluídos, mas desconfio um pouco desse modelo também. Eles têm algum espaço, mas estão aí por cota, como se tivessem que fazer um estereótipo para agradar as elites, mas apenas dentro do que as elites apontam como deve ser. Eu sou um intruso dos dois lados. Não sou marginal, mas escrevo sobre um jovem pobre; também não represento a classe média, mas estou em uma das maiores editoras do país (a Record)”, diz Henrique em um longo papo que tivemos por Skype.

“A figura do autor determina o que ele vai tratar como realidade. Uma vez, na faculdade, o professor falou que eu não deveria escrever poemas complexos e sonetos, mas apenas fazer hip hop só porque era pobre. Esse senso comum não é legal. Personagens com essas características, que passam por esse tipo de rotulação, acabam tendo essa possibilidade de representatividade e acho estranho pessoas tão plausíveis assim praticamente não existirem na nossa literatura”, continuou, defendendo a necessidade de ampliarmos a diversidade de pessoas retratadas.

Henrique me chamou atenção para seu livro antes mesmo de ele ser lançado. Entre uma cerveja e outra na Flip deste ano, o escritor explicou que o romance que estava para chegar às livrarias era inspirado em uma ação que muito repetiu enquanto trabalhava na lanchonete. Ele fez questão de se levantar da mesa e fingir que segurava um esfregão em suas mãos para explicar que havia uma maneira correta de se limpar o chão: pegar o instrumento e ir desenhando um oito com o pano e caminhando de ré. Ou, numa construção mais poderosa, como ele opta na obra, fazer “o símbolo do infinito e ir andando para trás”. “Quero ser chamado para a Flip só para levantar e fazer essa dancinha do esfregão, que é uma das primeiras coisas que se aprende no McDonald’s. É tipo um movimento de Sísifo,limpando o chão eternamente”, compara o autor.

Padrão, Padrão, Padrão

O infinito para quem trabalha numa loja dessas parece só ser possível enquanto regresso mesmo, devido à maneira como a humanidade de cada um ali é aplacada. No dia a dia limpando o estacionamento – ainda que ele já esteja limpo – e virando hambúrgueres sistematicamente, uma palavra se repete insanamente: Padrão. Padrão. Padrão. Padrão. Padrão. Para tudo é preciso seguir o Padrão. Não há crime maior do que se desviar do Padrão, tentar subvertê-lo. O Padrão é o patrão, o cara que manda apenas zela rigorosamente pelo Padrão. Está lá: “O gerente de bigode, cofiando os pelos, diz que o direito de greve é lei, e que entende a reivindicação dos garotos. Mas que isso não é maior que o Padrão, que foi atingido no nervo”. Ou seja, até entende a insatisfação, mas é preciso seguir o Padrão. Quer ser você mesmo? Pode ser, desde que o “você mesmo” seja exatamente o que o Padrão exige.

Já o tecnicismo brutal aproxima o ambiente de trabalho no qual o jovem vive das piores distopias da literatura. À frente da chapa, exige-se que os humanos sejam robôs, que jamais contestem ordens e que se lembram sempre de que “ali não é lugar de sindicalismo”. Quando o protagonista entra na faculdade, descobre também que onde trabalha é quase um pecado – ou um sinal de arrogância, esnobismo - buscar aprimorar a inteligência e pensar de uma maneira menos óbvia. Por experiência própria, sei que esta é uma realidade que não se limita às redes de fast food. Meu primeiro emprego foi de auxiliar administrativo em uma empresa de cobranças, e ali a situação era bastante semelhante. Não por acaso, “abriram mão dos meus serviços” logo após eu questionar algumas lavagens cerebrais que tentavam fazer com os funcionários.
Uma das funções da literatura pode ser exatamente colocar essas realidades em cheque, mostrar a jovens que eles podem – e devem! - se mostrar pensantes, principalmente quando são encarados como meras máquinas. Que às vezes é preciso se rebelar e socar o gerente bigodudo, nem que seja metaforicamente. Mostrar outras possibilidades e caminhos para o futuro, que pode ser diferente de um infinito que anda para trás.

Henrique também acredita nisso. “O escritor tem que ser do contra. Se não for, vai fazer uma literatura muito questionável. A literatura deve mostrar, por meio da representação simbólica, o que não está certo. O germinal, do Zola, está na epígrafe do livro por isso, ele escreveu o romance baseado na greve dos mineiros. A arte não tem, inicialmente, uma missão utilitária e social, mas pode apontar para aspectos bizarros que deixamos de achar errados por causa do cotidiano. Essa mecanização é o oposto da literatura, que é a liberdade”.

Necessidade da ascensão cultural

Henrique, o escritor, é velho malandro das letras, sabe o que está fazendo quando usa frases de efeito como “mesmo quando tudo para, ninguém pode ficar parado” ou “isso, garoto, vai dançar aí para sempre, você nasceu pra isso”. Poeta, cronista e organizador de antologias de contos inspirados na Legião Urbana e nos Beatles, autor de livros infantis e assessor de literatura do Sesc, deixou para estrear no romance agora, perto dos 40 anos, e levou seis meses para concluir O próximo da fila. “Sabia que história eu ia fazer, com qual final, quais desdobramentos. Só estava receoso com relação à primeira pessoa, com medo de acharem que era confessional, por isso escrevi em terceira, mas não gostei. Depois escrevi capítulos em primeira e percebi que os leitores é quem se colocariam na pele do personagem”, relata sobre a experiência.

Se frases cunhadas por ele como as citadas no parágrafo anterior vão além do mero impacto inicial – a primeira explicita a estupidez empresarial; a segunda, a crueldade em achar que alguém realmente nasce para viver de fazer o símbolo do infinito com um esfregão –, na estrutura do romance Henrique também não nos apresenta algo plano. Além da história de formação do protagonista, em seu entorno encontramos um ótimo retrato da delicada realidade que o país vivia no início dos anos 1990.
Dessa forma, fala de um povo com receio da democracia após se decepcionar com suas próprias escolhas que sucederam a ditadura civil-militar e de uma época de hiperinflação e incertezas econômicas. “A realidade da minha mãe, no entanto, é diferente. Ela sabe que vem chegando o mês de reajuste do aluguel, e que a inflação vai dobrar o valor e sozinha não vai conseguir manter a casa e dois filhos”, relata o protagonista. Dessa forma, um retrato mais amplo, não apenas particular das classes pobres é traçado – ainda que o particular, no caso, já universalize satisfatoriamente as parcas possibilidades dos jovens menos abastados, maioria em nosso país.

“É o livro das coisas que dão errado e você precisa seguir em frente. Você está vivendo uma crise, sua família está numa situação ruim economicamente e você tem que continuar”, diz o escritor. “Essa turma das classes C e D está eternamente na sociedade brasileira condenada a viver o movimento igual ao do esfregão. Esse livro acaba em 1994, antes do Plano Real. Depois essas classes cresceram em termos econômicos, puramente de consumo, mas permanecem bem paradões em termos educativos e culturais. É muito bom que saiam da faixa de miséria, tenham acesso a geladeira e fogão, mas a evolução precisa ir além disso. Hoje eles têm todos os bens de consumo vendidos como fundamentais, mas não têm livros em casa. Ainda falta esse salto: termos educação e cultura em larga escala”.

Transformando em literatura a vida das classes C e D que Henrique constrói um romance importante em nossa atual cena literária. Precisamos mesmo de mais funcionários do McDonald’s bem representados artisticamente – e de menos personagens escritores, jornalistas ou professores, de menos personagens como Roberto, o mal-acabado do início deste texto. Esse é um passo-chave para a pluralidade social tão defendida pelos próprios autores de nosso país.