montaigne

Quem foi Michel de Montaigne? Um aristocrata francês que, do alto de sua torre, inventou o ensaio. Era um leitor empenhado, rigoroso, mas também irrequieto: saltava de livro em livro, percorria as estantes ao acaso, permitindo que as conexões acontecessem tanto fora quando dentro da mente (nisso foi precursor da “lei da boa vizinhança” de Aby Warburg — que organizava sua biblioteca pelas afinidades, e não pelo alfabeto). Aquilo que Montaigne fazia em seu local de trabalho, seu escritório no alto da torre, fazia também em seus ensaios, saltando de um assunto ao outro, movimentando o pensamento, frustrando expectativas estabelecidas de antemão. “O que sei eu?”, pergunta Montaigne em um de seus ensaios mais famosos, “Apologia de Raymond Sebond”. E ele próprio responde, no ensaio “Sobre Demócrito e Heráclito”: “rendo-me à dúvida e à incerteza, e à minha forma mestra, que é a ignorância”. Uma ignorância temperada por erudição, uma erudição que se espalhava por todos os lados, e isso literalmente, pois as traves de sustentação do teto de seu escritório receberam inúmeras gravações de citações em latim, de autores como Plutarco, Virgílio e Cícero, numa espécie de instalação texto-visual que sobrevive ainda hoje.

Tendo visto guerras civis, revoltas e massacres tanto de cristãos quanto de protestantes ao longo do século 16, Montaigne conhecia de perto o lado perverso das certezas absolutas. Seu desejo era escrever sobre si e sobre o mundo com franqueza, sem dogmatismo ou imposições, valorizando não a passividade — embora tenha um ensaio intitulado “Sobre a ociosidade” — ou um multiculturalismo acrítico, e sim o diálogo, o debate, a manutenção crítica das diferenças. As viagens que realizou ao longo da vida foram fundamentais para Montaigne, deram a ele perspectiva, visões alternativas acerca do mundo e muito material a ser elaborado e articulado com suas leituras — essa relação de Montaigne entre movimento e pensamento será desenvolvida no futuro por escritores como Rousseau, Nietzsche, Robert Walser e W. G. Sebald. Contudo, não apenas as viagens feitas por Montaigne entraram em seus ensaios. Talvez a viagem mais importante para a longevidade de seus ensaios tenha sido aquela em direção ao “Novo Mundo” e ao Brasil especificamente. Foi a partir da leitura dos escritos dos viajantes que Montaigne pôde escrever um dos seus ensaios mais célebres, “Sobre os canibais”.

Essas e outras particularidades de Montaigne são resgatadas em um livro recente de Antoine Compagnon, Uma temporada com Montaigne (tradução de Rosemary Abilio, pela WMF Martins Fontes). A situação que deu origem ao livro não podia ser mais francesa: Compagnon é convidado pela emissora France Inter para falar sobre Montaigne no rádio, alguns minutos todo dia, ao longo do verão. Por conta disso, o livro é breve, organizado em quarenta pequenos capítulos temáticos, nos quais Compagnon resgata algumas das características pessoais de Montaigne, seu estilo, sua localização histórica e como tudo isso pode ainda ser intensamente aproveitado no presente. Se Montaigne serviu para Shakespeare — que retirou trechos dos ensaios quase que literalmente em peças como Hamlet e A tempestade — por que não serviria também para nós?

Aproveitando a fluidez do meio e da ocasião — o rádio, o verão —, Compagnon dá apenas breves indicações do pensamento de Montaigne, progredindo por temas, selecionando algumas citações dos ensaios e deixando no ar, sob responsabilidade do ouvinte, a possibilidade de ligar os temas do passado ao presente. As ligações são claras, mas nunca excessivamente didáticas. Fazia parte do método de Montaigne abrir a linguagem à contradição, ressaltando que a linguagem nunca se presta às certezas absolutas. “A seu ver”, escreve Compagnon, “todos os distúrbios do mundo — processos e guerras, litígios privados e públicos — estão ligados a mal-entendidos sobre o sentido das palavras, até mesmo o conflito que divide tragicamente católicos e protestantes”.

É por conta disso que Montaigne busca, na medida do possível, a sinceridade, a ausência de interesse, a gratuidade, em um processo documentado pelos próprios ensaios. “O livro se apresenta como um autorretrato”, escreve Compagnon, “ainda que esse não fosse o projeto inicial de Montaigne, quando se retirou para suas terras. Nos capítulos mais antigos, ele não se descreve; mas pouco a pouco foi chegando ao estudo de si como condição da sabedoria e, depois, à descrição de si como condição do autoconhecimento. A exigência de um autorretrato foi a forma que assumiu para ele o ensinamento de Sócrates: ‘Conhece-te a ti mesmo’”. Nesse aspecto, Montaigne é um precursor da nossa era subjetivista e individualista — aquilo que Richard Sennett chamou de “declínio do homem público”. Mas, por outro lado, seu individualismo já vem com o antídoto: ele jamais esconde seus defeitos, sejam físicos (os cálculos renais, a memória defeituosa) ou de temperamento (desconfiado, pessimista), e seu autorretrato é também uma paisagem, pois tenta mostrar o indivíduo em seu contexto, na relação com os eventos que lhe couberam viver.

Por mais vívido que pareça um relato de Montaigne — como esse feito por Compagnon —, por mais próximo que ele pareça por conta de sua franqueza, ele será sempre um personagem livresco, uma entidade textual. Não deixa de ser irônico e representativo, portanto, que sejam justamente os livros seus melhores amigos. Foram os livros e seus personagens que o acompanharam em sua solidão tão produtiva, pois, para Montaigne, escreve Compagnon, “os livros são companheiros sempre disponíveis. Velhice, solidão, ociosidade, tédio, dor, ansiedade: não há nenhum mal comum da vida ao qual não saibam fornecer um remédio, desde que esses males não sejam fortes demais. Os livros moderam as preocupações, oferecem um recurso e um socorro”. Assim como a Filosofia ensina a morrer — a perceber a finitude de todas as coisas —, como ensina Montaigne em ensaio de mesmo nome, também os livros cumprem essa missão: dar conta da vida como devir e passagem, e não insistência cega em repetir sempre os mesmos erros.