A poesia de Sebastião Uchoa Leite (1935 – 2003), parafraseando um dos seus poemas, é “um olho que olha para dentro”. Nela, não há a ansiedade que antecede o medo de enxergar o abismo que há em si: seus versos, de tão urgentes, são o próprio abismo. O poeta, que confessou jamais sentir a tal “angústia da influência” tarimbada por Harold Bloom, deixou um legado que navegou escolas e estéticas tão plurais, que se embaralharam num complexo quebra-cabeças de metáforas pulverizadas, autoironia profunda e um lirismo brutal em forma e conteúdo. Neste 2015, quando completaria 80 anos, uma parceria entre a Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) e a Cosac Naify possibilita a edição da obra poética completa desse pernambucano de Timbaúba, que sedimentou no Recife as bases da sua língua poética e encontrou no Rio de Janeiro a sua forma de ampliá-la.
O volume Poesia completa, ainda sem data de lançamento, apresenta a produção de Uchoa Leite por ordem de feitura dos poemas. A decisão editorial é valiosa, visto que entre o primeiro livro do poeta, Dez sonetos sem matéria (1960, editado por O Gráfico Amador, no Recife), e o segundo, Antilogia (1979), constrói-se uma longa e insólita ponta. Um silêncio editorial que não se reflete, necessariamente, na ausência de escritos – poemas feitos entre 1958 e 1970 viriam à luz em 1988, na coletânea Obras em dobras, materializados nas seletas Dez exercícios numa mesa sobre o tempo e o espaço e Signos/Gnosis. Houve, sim, um período mudo, de nove anos, entre 1970 e 1979, que sugere um paralelo entre a própria perspectiva de Uchoa Leite sobre seu trabalho como poeta e o encontro da voz que se tornaria sua marca.
“Jamais tive vocação para coisa alguma na vida, só para a aspiração de uma vagabundagem infinita. Essa história de poesia comigo é ‘preguicite’ mesmo, e só. Não tenho ideais nem coisa alguma que me salvem de ser um mero pilantra, e muito menos uma fé qualquer”, declarou o poeta em entrevista à revista Continente, em agosto de 2002. No entanto, o intervalo de tempo que separa Dez sonetos sem matéria e Antilogia estabelece, antes do fantasma do silêncio, um período de profundo amadurecimento poético, influenciado especialmente pela forma da poesia concreta e a amplitude do tom coloquial do seu ácido lirismo.
Se nos seus primeiros escritos Uchoa Leite reverenciava Valéry e a estrutura de sonetos, a partir de Antilogia (obra vencedora do Prêmio Jabuti em 1980) ele revelaria o amadurecimento estético que guiaria sua voz real e inflamada pela crítica. Sua mudança do Recife, onde cursou Direito e Filosofia, para o Rio de Janeiro, ainda na década de 1960 e onde ficou até sua morte, foi decisiva para o encontro com a estética que o consagraria. “O artista perfeito não precisa ocultar pistas”, sentenciaria o poeta como verso. E parecia estar certo: à luz das suas revelações e interesses, sua mitologia particular se fortificou.
“Por trás dos vidros como o peixe de miss moore/ que me importa/ a paisagem e a glória ou a linha do horizonte?/ o que vejo são objetos não-identificados/ metáforas em língua d’oc/ em que li – não sei onde –/ que o mundo é uma metáfora/ o ventre do universo está cheio de metáforas/ que poetas escreverão sobre o kohoutec?/ toneladas de versos/ ainda serão despejados/ no wc da (vaga) literatura/ ploft!/ é preciso apertar o botão da descarga/ que tal essas metáforas?/ ‘sua poesia é um fenômeno existencial’ /olha aqui o fenômeno existencial”, ditam os versos de Encore, poema que abre Antilogia. Como aponta o poeta Frederico Barbosa, no texto de apresentação de Poesia completa: “É bastante emblemático que o primeiro verso de Antilogia refira-se a Marianne Moore (poeta modernista americana). Na sua fascinação com a prosa, com a ‘antipoesia’, Uchoa Leite, antes tão influenciado pela linha simbolista ‘sério-estética’ de Mallarmé e principalmente de Valéry, aproxima-se, através de Corbière e Laforgue, da ‘poesia-moderna-que-é-prosa’, de ‘Miss Moore’. Descrevendo a poesia da americana, ainda no mesmo ensaio, Uchoa Leite acaba, aparentemente sem querer, descrevendo muito do que pode ser detectado na sua própria poesia a partir de Antilogia”.
Os indícios a que Frederico Barbosa se refere repousam, entre outros, na disposição de Uchoa Leite em quebrar ainda mais os cacos da ruína do projeto modernista e encontrar o tom da sua poética, principalmente na sua particular “desarticulação do imaginário poético centrado na metaforização”. Para isso, a ironia se tornará sua principal aliada, como se pode perceber nos versos de Encore (“é preciso apertar o botão de descarga/ que tal essas metáforas?”). O próprio eu-lírico sofreria desmantelo semelhante, como no poema Metassombro: “eu não sou eu /nem o meu reflexo/ especulo-me na meia sombra/ que é meta de claridade/ distorço-me de intermédio/ estou fora de foco/ atrás de minha voz/ perdi todo o discurso/ minha língua é ofídica/ minha figura é a elipse”.
As formas experimentais e experimentadas por Uchoa Leite em Antilogia encontraram maior flexibilidade de fruição na obra que a sucede. No igualmente execelente Isso não é aquilo, de 1982, a forte ironia se alia a temas cotidianos e de concretude mais visível. Mesmo quando retoma propriamente a insólita “destruição da máquina das metáforas”, toma para si o que há de mais recorrente (clichês, até) nesta simbologia poética, como em A morte dos símbolos: “demônios tigres punhais/ serpentes enforcados corvos/ espelhos labirintos mandalas/ livros caixas relógios mapas/ chaves números mágicos/ duplos metamorfoses monstros/ vamos destruir a máquina das metáforas?”.
A crítica social também ecoa em poética forte neste livro. Surge como moscas pernambucanas que testemunham apáticas as diferenças sociais do Recife (“as moscas pernambucanas/ nem místicas nem metafóricas/ são indiferentes:/ com certo método espicaçam/ a classe média dos aflitos/ os proletários do alto do pascoal/ nem históricas nem marxistas/ na impertinência estilística/ mas ainda mais fino ou mais zombeteiro (…)”) ou coloca um eu-lírico zombeteiro e atônito com a condução do governo do Reino Unido pelas mãos de ferro de Margaret Thatcher : (“16 vítimas/ milhares de libras/ para deter o estripador de yorkshire/ quantas serão precisas/ para mrs. thatcher?”).
Outra característica forte na poesia de Sebastião Uchoa Leite diz respeito ao intertexto com a obra de outros artistas, das mais variadas plataformas. Essas citações são uma constante na obra do pernambucano, mas ganham força expressiva na boa seleta que forma Cortes/Toques. É o caso de Post cards, poema narrativo cujas personagens são escritores do apreço de Uchoa Leite: “Ezra Pound/ (olhando/ de viés)/ MoVe aMONg the LoVers/ of perfection aLONe/ Gertrude Stein (mãos/ no bolso do casaco)/ boxeur das letras/ com Alice B. Toklas em off/ Rilke (dedos/ cruzados) olhando/ para baixo: ‘Rosa, ó pura/ contradição etc.’/ Mallarmé (xale/ xadrez nos ombros)/ com a plume/ ‘sur le vierge papier’/ Eles pensavam que dominavam/ essa áspide”.
Neste exemplo a seguir, as referências estão conectadas a outra obsessão da poética do pernambucano, o choque da violência urbana. Eis o poema que dá título ao livro e que revela o tom desesperançoso que permeia boa parte da obra: “Van Gogh cortou a orelha/ O Pequeno Hans tinha pânico de cavalos/ Landru queimava mulheres/ Manson & Família/ Riscaram Pig com o sangue das vítimas/ No subúrbio do Rio acharam/ Mulher tapada numa cisterna/ Papéis jornais recortes/ Grandes entulhos e um canal/ É difícil entender a desordem/ Há um ano ela olhava o mar desta janela”. O interesse de Sebastião pelo cinema e pelos quadrinhos também pipocam nas imagens sugeridas por Cortes/Toques, inclusive com poemas narrativos que nascem a partir de resenhas de filmes, como Cat people (terror de 1942 estrelado por Simone Simon) ou Black widow (thriller de 1987, estrelado por Debra Winger). Não por acaso, a violência guia o enredo dessas produções.
A relação de Sebastião Uchoa Leite com a morte sempre esteve presente nos seus versos. Seja através do grito de independência da vida das metáforas, seja na própria apreciação do eu-lírico sobre o tema. Uma trinca de seus últimos livros potencializa essa aproximação: A uma incógnita (1991), A ficção vida (1993) e A regra secreta (2002), ganhando outras focalizações ao refletir sobre a experiência da doença que acomete o poeta, como observa o professor e pesquisador Paulo Andrade, no artigo “Memórias das sensações: experiências do duplo na poesia de Sebastião Uchoa Leite”.
“Em livros mais recentes como A regra Secreta, a experiência de doença vivenciada pelo poeta encontra-se dramatizada, com humor e ironia, sobretudo nos 10 poemas que compõem a série Memórias das sensações, e de Dentro e fora da UTI. A linguagem utilizada em obras anteriores para encenar a experiência-limite de duplicidade vida/morte amplia-se em tessitura poética. As imagens que tematizam a proximidade da morte impõem-se já em A uma incógnita, aprofundam-se em A ficção vida, mas que se amplia e desdobra-se em A regra secreta, ganhando outras focalizações ao refletir sobre a experiência da doença. A auto-observação, como um duplo, idêntico e diferente de si mesmo, é a questão central neste livro de Uchoa Leite”, analisa Andrade.
Da série Memórias das sensações, de A regra secreta, “eu em p/b” é emblemático para compreender a “auto-observação” citada por Andrade. “é estranho olhar-se no passado e ver a vida transcorrer numa versão silenciosa e p/b. não sou mais o sujeito da ação, mas agora o objeto de observação sendo analisado. a vida está cristalizada, o tempo em ação morta, os gestos para sempre fixados em seu movimento e nada pode ser mudado ad infinitum. eu não sou eu nem sou o outro, sou e não sou, mas sou. o engano é real e o tempo é inexorável”.
Poucos são os poetas que souberam tratar questões finais de forma tão peculiar como Sebastião Uchoa Leite. Foi da ironia à confissão, da morte das metáforas ao desencanto profundo do seu eu-lírico, de forma pungente, preferindo o avesso sem temer ao verso. A importância de ter sua obra novamente posta à luz ele mesmo bem define, como no último poema da sua obra-prima Antilogia, quando, num poema gráfico em formato de uma cruz, avisou em forma de epitáfio:
aqui jaz
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sebastião
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leite