
Foi absurda a quantidade de polêmica envolvendo a carta em que Mario de Andrade, enfim, falava da sua homossexualidade, apenas revelada este ano. Na última Flip, em homenagem ao mestre modernista, a pesquisadora Eliane Robert Moraes (foto) não apenas revelou como a sexualidade do autor se alastrava em alguns dos seus textos mais famosos, como o quanto sua obra pulsava com questões eróticas — e mais eróticas ainda por revelarem temas fundamentais para pensarmos a identidade nacional.
Essa mesma identidade Eliane busca flagrar em panorâmica na organização que realizou da Antologia da poesia erótica brasileira. Um trabalho que cobre os assuntos de “baixo-ventre” dos nossos escritores, desde Gregório de Matos aos contemporâneos. E mais: o livro não fica restrito apenas aos cânones, focando também em textos anônimos, uma percepção genial do quanto o sexo é de um, de todos e de ninguém, que a pesquisadora teve ao montar sua seleção de “libertinos”.
“São misteriosos os laços que unem a poesia ao erotismo. Misteriosos e duradouros, já que o despertar da lira de Eros parece coincidir com a própria origem das línguas e, desde sempre, seus ecos vibram com intensidade por toda parte. Não admira, pois, que a escrita erótica tenha sido praticada por tantos poetas e que muitos deles tenham interrogado tais segredos para melhor conhecer o pacto entre a carne e a letra. As respostas que nos legaram repercutem, de forma notável, umas nas outras, como que reafirmando as fundações de um saber antigo”, observa Eliane em seu ensaio no começo do livro, demarcando para o leitor o terreno onde ele irá pisar daqui para a frente.
No texto, ela destaca ainda a diversidade e a vastidão (a antologia conta com 500 páginas) de um catálogo de literatura erótica no seio da literatura brasileira: “Num esboço de prefácio a Macunaíma, escrito por volta de 1926, Mário de Andrade observava que, no Brasil, ‘as literaturas rapsódicas e religiosas são frequentemente pornográficas e sensuais. Não careço de citar exemplos. Uma pornografia desorganizada é também da quotidianidade nacional’. Em contraposição a essa produção licenciosa que estaria dispersa na cultura popular, o escritor evocava as formas de ‘pornografia organizada’ que entre ‘os alemães científicos, os franceses de sociedade, os gregos filosóficos, os indianos especialistas, os turcos poéticos etc., existiram e existem, nós sabemos. A pornografia entre eles possui caráter étnico. Já falam que se três brasileiros estão juntos, estão falando de porcaria...’” Ou seja, o erotismo como texto, como expressão, também faria parte de uma espécie de identidade nacional em termos de ficção. A questão era justamente colocar ordem nesse legado, como um pastor a reunir ovelhas dispersas.
A organizadora faz questão de destacar ainda o caráter parcial do livro, como apenas um dos depoimentos possíveis do erotismo em nossa literatura. É compreensível o uso da palavra “parcial”: o jogo do erótico jamais trata do tudo descobrir, do tudo conhecer.