O jornalismo dos "desmentidos verossímeis" 

jornalismo 14 07
 
"Existe uma ótima palavra alemã, Schadenfreude, satisfação pessoal com a infelicidade alheia. É esse sentimento que o jornal deve respeitar e alimentar" ou ainda "os nossos (leitores) terão mais de cinquenta anos, serão bons e honestos burgueses que desejam a lei e a ordem, mas adoram fofocas e revelações sobre as várias formas de desordem". O discurso dialético em sua versão mesa de bar.
 
O suposto diretor de redação do suposto jornal "doa-a-quem-doer" altivamente despeja frases de efeito como essas no ambiente da suposta redação que comanda. Simei é arrogante, machista, ganancioso, coleciona ideias prontas sobre tudo e sobre todos, acredita que avanços tecnológicos são meros modismos e, por todas essas qualidades, ele é o protótipo perfeito não exatamente de um jornalista, mas do jornalismo, a entidade espiritualmente falida do novo romance de Umberto Eco: Número Zero (Record). Vendido por aí como uma crítica contundente aos meandros da imprensa em seu mal disfarçado casamento com o poder público, é preciso dizer que o livro de Eco acerta em sua premissa conspiratória, é brilhante na construção do personagem acima citado, mas peca ao tentar focar sua atenção em um protagonista que parece estar ali para ser uma espécie de consciência a redimir uma crise de valores tanto do jornalismo quanto de seus leitores (leia-se, a sociedade inteira).
 
Mas antes de chegarmos ao ponto em que o livro desacerta, comecemos pelos acertos. As primeiras páginas do romance encorajam: tradutor e jornalista de segunda linha é contratado para ser o ghost-writer de um livro sobre a farsa por trás da criação de um jornal chamado Amanhã (o jornalismo dos fatos já ocorridos não mais faz sentido, louvemos o jornalismo dos fatos pressagiados), um periódico que vai nascer para que um comendador pressione (chantageie) a elite financeira do país a aceitá-lo como membro distinto desse clube. O Amanhã é um embuste, uma ficção dirigida por Simei, o mesmo homem que vai contratar o protagonista para escrever esse livro sobre os bastidores de uma redação de jornal que já nasce comprada, ainda que sua equipe de repórteres desconheça esses acordos. O livro será escrito por Colonna, o tradutor-jornalista-protagonista da história, único membro da redação que está ciente de todos os contratos até ali firmados, mas será assinado por Simei, o diretor de redação moralista que quer ele mesmo chantagear o comendador.
 
Claro está que Eco pretende usar a figura de Simei como epítome das oscilações de caráter do próprio jornalismo. A ideia de que só o farsante pode denunciar a farsa é irônica, assim como é irônico um personagem que, ao mesmo tempo que pretende forjar um documento contra si próprio (mas sobretudo contra seu contratante), não consegue ocultar de ninguém a prepotência e a soberba de quem acredita em suas próprias mentiras. Simei é o ladrão que rouba ladrão a fim de ganhar 100 milhões na conta corrente.
 
Eco poderia concentrar toda a energia de sua nova obra nesse personagem e teríamos aí material suficiente para a descrição do legítimo filho do capitalismo/jornalismo das especulações. Mas em lugar disso, ele joga como protagonista o tal do Colonna, sujeito de boa índole que, no fim das contas, se torna um desvio moralista no livro. Funciona como o observador que não se envolve muito, porém escuta bastante. Ele é cúmplice do crime e é descrito para que sintamos uma certa empatia por suas pequenas falhas de caráter. Seria excelente se tudo isso estivesse ali para falar do quão escorregadia e binária pode ser a sociedade do venha a mim o vosso reino. Mas Colonna é um herói nos moldes clássicos. E como tal, ele está ali para salvar.
 
Dois exemplos disso. O primeiro é a maneira como o escritor, filósofo e semiólogo descreve a relação entre Colonna e Maia, a única mulher do livro. Agredida verbalmente por comentários machistas de Simei, Maia é a jornalista descreditada na redação em todos as suas sugestões pelo simples fato de ser mulher. Seria brilhante se Eco fizesse com isso uma crítica ao machismo tão presente nas redações de jornais, revistas, entre outros, como parece tentar fazer. Mas eis que ele joga Colonna lá para defender e proteger a mocinha em uma relação romântica tão óbvia do ponto de vista narrativo quanto problemática para a credibilidade de um livro pretensamente crítico. 
 
O segundo é a descrição final, quando ele vira o interlocutor de Eco para iluminar a todos com a verdade mais profunda sobre o jornalismo: "As pessoas de bem vão continuar votando nos canalhas porque não acreditarão na BBC ou não verão programas como os desta noite porque estarão grudados em algo mais trash". E, de repente, o personagem reproduzido em todo livro como um "perdedor", sem muita opinião formada sobre as grandes questões, se torna cônscio de todas as estruturas. Soa remissório.
 
De qualquer forma, o romance ganha mesmo numa trama paralela que se cria com o relato de um dos repórteres contratados pelo Amanhã. Braggadocio, "especializado em revelações escandalosas", descreve para Colonna uma teoria de que Mussolini não teria morrido na Segunda Guerra e que o corpo apedrejado em praça pública teria sido o de um sósia do ditador e que o verdadeiro Mussolini teria ou fugido pra Argentina, ou se refugiado durante anos no Vaticano. Braggadocio investiga essa hipótese, bem como a da existência de uma organização criminosa internacional que teria surgido pós-Guerra, e as transcreve em longas conversas para Colonna. Conversas que, dada a quantidade de personagens envolvidos, se torna propositalmente enfadonha em várias ocasiões. Quase como se Eco quisesse que nós, tal como o protagonista, perdêssemos a paciência com os fatos quando eles são, finalmente, investigados. Ainda que eles sejam fictícios.