karina resenha

Foi na rua Ambrosina Carneiro, Casa Forte. Ela morava no prédio novo mas torto, que ameaçava cair a todo instante, sustentado por injeções de cimento, namorava no portão e estudava no Contato. Karina Buhr, bela adolescente, chegou a dar entrevista nos jornais, dizendo que eu era seu escritor favorito. Fiquei babaca, bestando pelos cantos. Acreditei, é claro, e disse para a rua inteira ouvir. “Essa menina tem futuro.” Eu nem sabia mesmo o que ela gostava de fazer. Tocaria piano, violão ou atabaque? A mãe, aquela senhora baixinha com os cabelos de índia, que eu nunca soube o nome, era professora de piano e de inglês. Foi o que me disseram. Se estiver enganado, não provo nada.
 
A menina namorava no portão do prédio, discreta e sutil. Se fazia alguma coisa, além de beijar e afagar, era por baixo dos panos.  Agora que o futuro chegou é revolucionária, maravilhosa e forte. Tem futuro, sim, e o futuro é agora. Canta, este cantar debochado e aflito de bluseira apaixonada e aflita: “Desperdiço-te-me.” Voz de guitarra entricheirada na dor, no pranto e na solidão, com um copo de uísque entre os dedos.  E escreve. Faz assim, sem ter nem ver, as duas coisas que tentei fazer a vida inteira: música e literatura.  Por isso fui escrever e tocar sax. Muita alegria sofri tocando o meu esquisito saxofone nas dobras da noite. Também já fui jovem. Mentira? Te esconjuro. Veja bem. Escancara o gerúndio, que eu morro de medo, na capa do livro, com uma ousadia de menina saliente – Desperdiçando rima. Estudasse redação, já estaria condenada, “eduque o gerúndio, garota”. Mas ela, graças a Deus, não é escritora de terninho e sapatinho, se arrebenta nas pedras e se abraça com os mariscos.  Gerúndios, imperfeitos, advérbios e adjetivos que  se f*. Não é, Karina?
 
Este é um livro que treme luz em vício de boate, louco, engasgado, sofrente. Tinha graça, Karina escrevendo livro de terninho e gravata borboleta, texto cirúrgico, chamado pra dançar no escurinho do cinema. Karina é berro de dor, de açoite, de pranto. E de prazer, este prazer que torna o homem marcado pela morte e pela alegria, sentindo o sol no peito e se desmanchando em gozo, mais pura do que camisa alva manchada de sangue.
 
Quero ler Karina, quero cantar com Karina, estes  poemas de medonho fogo, as labaredas subindo para queimar minha língua e ofuscar meus olhos. Assim: “Quem sabe a norma erra a forma. Quem tem culpa faz sofrer”. Minha vizinha escreve certo por linhas tortas, feito gato no telhado. Era minha vizinha, é minha vizinha e a gente nunca trocou uma palavra, um reles bom dia sequer. Nem mesmo naquele dia, domingo à tarde, em que nos encontramos no ônibus de Olinda, você estava  saindo da praia, os cabelos molhados, pandeiro na mão, e nem me viu.
 
Eu nunca soube que ela escrevia, ela nunca soube que eu tocava saxofone nos Tártaros, e cantar é para mim o que eu sempre quis. É assim, a vida passa, até a uva passa.