Lembro que numa palestra de Elvira Vigna, há alguns anos, ela faz uma comparação curiosa em relação à sua situação na Companhia das Letras, talvez a editora brasileira com maior capital cultural: “É como se morasse num apartamento à beira- -mar, mas dormisse no quarto dos fundos”. A reclamação reflete a falta de disposição da editora em divulgar essa que é uma das grandes escritoras brasileiras, cujo trabalho ganha repercussão basicamente pelo boca a boca dos seus leitores, um grupo que cresce a cada novo trabalho, mas que poderia ser bem maior se Elvira fosse amparada pelo poderoso marketing da sua casa editorial.
Uma situação semelhante vive o sergipano Antonio Carlos Viana, também autor da Companhia das Letras e também sem vista para o mar. O que é uma pena. Poucos autores brasileiros hoje demonstram a sua maturidade na construção de histórias, sempre armadas com uma técnica afiada, que de tão elaborada parece simples, nos fazendo acompanhar seus desenrolares (na maioria das vezes dolorosos) num fôlego só, sem que a “costura” de sua arquitetura se mostre aparente. A arquitetura dos seus contos é praticamente perfeita. Viana é um contista clássico, sem os modismos que o mercado exige.
Numa entrevista para o Pernambuco mês passado, Viana comentou sobre a construção dos seus livros, ressaltando como eles são armaduras cerebrais: “Uma das coisas que mais prezo num livro de contos é a sua unidade, seja ela narrativa ou temática. Se o autor ficar mudando de estilo e de forma a todo instante, o leitor fica desnorteado. Quando estruturo meus livros, muitas vezes abandono boas histórias porque elas destoam das outras. Procuro criar um universo em que o leitor mergulhe e ao final da leitura tenha uma visão unitária do conjunto. Ele precisa dizer para si mesmo: ‘que livro sufocante’, ou ‘que livro engraçado’. O que não pode acontecer é ele dizer ‘o que foi mesmo que acabei de ler nesse livro?’, ‘O autor quer ser sério agora ou que ser cômico?’”.
Essa segurança em relação ao espírito e ao alicerce do texto faz da sua nova coleção de contos, Jeito de matar lagartas, um dos principais lançamentos editoriais do ano, ainda que o livro tenha chegado às livrarias sem qualquer alarde. Aqui, Viana retoma sua característica obsessão de retratar personagens à margem, biografias quase invisíveis, no limite da dignidade. Temos mulheres obcecadas com a passagem do tempo, a solidão de uma viúva que coloca a casa à venda apenas para ter com quem conversar, um idoso que observa isolado, isolado dentro de si, a triste festa de aniversário que realizam para ela (numa reescritura do conto “Feliz aniversário”, de Clarice Lispector, mas sem qualquer epifania)… É curioso o quanto, nesses tempos em que a realidade parece querer disputar absurdos com a ficção, os contos de Viana nos deixam perplexos justamente porque essas pessoas não parecem tão próximas, parecem estar ali do lado.
Vale conhecer também o livro anterior do escritor, Cine privê, terrível ao narrar a vida de um homem que limpa cabines eróticas de cinema pornô. Uma obra justamente sobre enxergar a dignidade humana, sobretudo em momentos de ausência absoluta. É hora do Brasil conhecer melhor o trabalho de Viana.