Guillermo Barquero/Divulgação

 

É extremamente delicado escrever sobre personagens cegos sem cair na armadilha de usar a própria cegueira como uma alegoria pobre para o distanciamento entre esses personagens e o mundo que os cerca. E não é todo escritor que tem a autoridade de um José Saramago para produzir frases de efeito do tipo “se puderes olhar, vê, se puderes ver, repara”. Mas Lina Meruane conseguiu escapar dos lugares comuns no romance Sangue no Olho, seu mais elogiado livro (e o primeiro publicado no Brasil), com uma narrativa que diz mais respeito à criação de memórias (Borges e nosso poeta contemporâneo Glauco Matoso, cegos, exemplificam isso) do que a perda delas, num romance sobre pertencimento geográfico dos corpos e os inevitáveis abandonos que os traumas geram.

 

Lina é também o nome de sua protagonista, uma escritora chilena que mora em Nova York e sofre um derrame nos olhos, deixando ela gradativamente sem visão. À exceção dessa condição clínica, todo o resto do contexto procede na vida da própria escritora, uma chilena residente na cidade de Nova York. Ela escreve a partir de seus referenciais mais próximos, algo bastante comum entre escritores que já foram jornalistas e não conseguem/querem se desvincular totalmente da realidade que lhes cerca mais intimamente, sob risco de se expor mais.

 

É numa festa, momento de celebração coletiva, que a personagem vê sangue entrando pelos seus olhos. A partir daí, o que se segue é a descrição de um universo contido na memória que ela tem de si própria, do namorado, da família, das ruas por onde circula e circulou. Após esse episódio inicial, nada de tão extraordinário acontece na história e é mérito da escritora conseguir criar um romance inteiro centrado no debate interno de alguém que se nega a viver a tragédia. Sua escrita, particularmente nas primeiras páginas do livro, é cercada de estratégias de resistência. Algumas frases não se completam, muitas palavras não são ditas, as ideias se rompem no meio do caminho. Lina as recusa do mesmo modo que recusa claramente a ameaça de que pode, de fato, não voltar a ver.

 

Na espera de entender como o coágulo se desenvolve, ela viaja em férias forçadas ao Chile, lugar a que seu corpo pertence, das avenidas, rotatórias, esquinas e heranças históricas – as sombras da ditadura chilena sempre presentes – que ela conhece de olhos fechados. Mas Lina nega esse lugar, não admite ser operada lá. A operação acontecerá em Nova York, cidade do exílio, onde seu corpo é um ser estranho. Não há autocomiseração, mas há sim uma intenção clara de abandonar primeiro para não ser abandonada depois. Ser emocionalmente indiferente se torna mecanismo de sobrevivência. Sua relação com o namorado, Ignacio, é aquela que melhor condensa as intenções da protagonista. Ele, que circula lá fora, “trazendo cheiro de cidade, de ruas abertas e de papéis velhos, trazendo cheiro de uma alegria que logo se dissolvia”, significa para ela a última fronteira do afeto. Recusá-lo é, para a personagem, uma operação cirúrgica sem anestesia.