Testemunha e atorprivilegiado desse revolucionário século 20, herdamos de Nicanor Parra (Chillán, 1914) sua antipoesia, possivelmente a aposta estética mais surpreendente, sofisticada e inovadora da literatura contemporânea.* Uma escrita que é desfrutada pelo público e pela crítica, mas que pede um novo olhar sobre ela. Acontece que ela desconstrói todas e cada uma das premissas metafísicas que sustentam o modelo de escrita e leitura herdado, mas são precisamente essas premissas as que impedem de apreender a sua revolução. Essas proposições não apenas sustentam senão que promovem os modos de escrita e leitura que articulam os discursos críticos e filosóficos, algo que, sem dúvida, dá frutos nas interpretações, mas que no momento de abordar esta escrita não fazem outra coisa senão anestesiar e reprimir suas contribuições ecologicamente revolucionárias! Convenhamos que o próprio anti-poeta sabe que este impasse cultural resulta inevitável, ao ponto que prescreve esse fracasso quando aponta que sua antipoesia é:
Um enigma que se nega a ser decifrado pelos professores
(Also Sprach Altazor, 1993)
Por essa razão acreditamos que essa comemoração deveria nos servir como um convite para nos abrirmos ao mistério antipoético e tentar ir além dessas premissas que nos fazem ler a anti-poesia como se fosse “poesia”, nas circunstâncias em que sua escrita joga e desconstrói precisamente tudo o que se entrega através desse feitiço “poético” e seus modos de leitura.
TUDO É POESIA
Menos a poesia
(Artefactos, 1972)
Precisamos saber ler a contradição. Ou melhor, precisamos ler essa contradição em sua radicalidade! Pois o que sabemos é que tudo nessa escrita está em contradição e não podemos reduzir nem renunciar jamais a esse jogo de oposições. Daí a possibilidade de ler a antipoesia como escrita poética e simultaneamente como não-poética. E não apenas isso, mas também como uma ferramenta que age e reflete sobre aquilo que nos foi dito que é poesia e o que devemos esperar dela. Para tanto, mesmo que resulte contraditório, ela integra o que essa “poesia” rejeitava, ignorava ou reprimia. Sua sabedoria integradora, contraditória e desconstrutiva, nos permite conhecer e transformar de um modo complexo e original a nossa maneira de experimentar e conceber a poesia e também aquilo que se espera dela! Sem dúvida, antipoesia representa um momento de autoconsciênciaestética e cultural sem precedentes! Não esqueçamos que complexidade vem de “complexus” que em latim significa “reunir aquilo que está separado”, “ensamblar”. Entende-se então a necessidade e importância de assumir a complexidade da experiência antipoética, pois, desse modo, não claudicaremos diante daquilo que ela própria põe em jogo:
DEVER DE CASA
Aprender a viver na contradição sem conflito
(Obras públicas, 2006)
Celebrar o autor homenageado com o prestigioso prêmio Cervantes nos brinda a oportunidade de lersua obra de outramaneira. E isso não nos deveria surpreender se considerarmos que Derrida também tinha marcado esta transformação civilizacional ao assinalar: “já que se escreve de outra maneira, devemos ler de outra maneira”. Neste sentido, anunciamos aqui a necessidade de ir além da simplicidade metafísica assumindo a complexidade emergente, inclusive, como faz a antipoesia, indo além da complexidade:
TEMPO PARA POESIA
NUBLADO
(Artefactos, 1972)
Se no esteticismo metafísico a poesia se deixa digerir sem problemas, na antipoesia o autor se vê na obrigação de advertir o leitor sobre o indigesto que pode resultar a leitura:
A POESIA COMO BOLO DE NOIVA
a antipoesia
como rolo de arame farpado
(Obras públicas, 2006)
Vale a pena esclarecer que os critérios estéticos e seus modelos de leitura resultam necessários e úteis quando se aplicam a aquilo que se conhece como poesia ou literatura. Entretanto, se aplicados à antipoesia, revelam-se pobres, insuficientes e, principalmente, artificiosos! Já que a desconstrução antipoética não age só no espaço poético e literário, mas também naquilo que é cultural e civilizacional:
Dou por inaugurado o século XXI
Fim à afetação grecolatinizante
Venha o bu¹
Não mais mentiras piedosas
É preciso falar a verdade ao leitor
Mesmo que fique com os cabelos em pé
Chega de subterfúgios
Assumamos de uma vez
A nossa precariedade agropecuária
O resto é literatura
Má literatura modernista
A outro Parra com esse osso senhor Reitor²
Detesto a literatura
Tanto ou + que a antiliteratura
(Discurso de Guadalajara, 1991)
Mais que uma mudança de rumo, a aparição da antipoesia marca um antes e um depois ineludível na literatura e na cultura contemporânea. Durante as primeiras décadas do século 20, se aprecia uma total fluidez no manejo dos materiais lingüísticos promovidos tanto pela tradição como pela experimentação, pela ruptura e pela alquimia vanguardista. Já nos anos 50, todos estes registros acusam desgaste e esgotamento. Situação que se aguça com a aparição de novas sensibilidades e principalmente com os novos contextos sociais e culturais. A retórica heroica, o solipsismo, o jogo verbal e o hermetismo metafórico, tão próprios do esteticismo modernista, perdiam plausibilidade perante as novas audiências. Por outro lado, a ruína dos projetos ideológicos dominantes se encarna na inequívoca e aterradora imagem de Hiroshima, Auschwitz e as atrocidades estalinistas, ícones que desenganaram definitivamente a fé na racionalidade e nas cosmovisões herdadas. Por sua vez, as revoluções científicas tornam complexa a imagem que tínhamos da natureza e as novas tecnologias reorganizam a ordem trabalhista e social que põem em movimento modos de vida e de comunicação desconhecidos até então. É assim como, forçados pelas mudanças, vêm à tona práticas discursivas claramente desviantes a respeito da cultura ilustrada e à ortodoxia esteticista:
Durante meio século
A poesia foi
O paraíso do bobo solene
Até que enfim eu vim
E me instalei com a minha montanha russa
Subam, se lhes acomoda.
Mas é claro que não respondo se descem
Botando sangue pela boca e pelo nariz
(Versos de Salón, 1962)
A estreia oficial da antipoesia se produz com Poemas y Antipoemasno ano de 1954. Desde então, Parra se joga na difícil e incerta tarefa de rearticular a língua poética, já que em seu modo de ver
O céu está caindo em pedaços
Este diagnóstico — que nos anos 50 parecia uma licença poética — resultou ser um vaticínio perturbador pelo seu realismo, pois manifestava a urgência de Parra por construir uma língua própria (“Assim como os fenícios, pretendo formar meu próprio alfabeto”). Uma língua que fosse capaz de sustentar-se perante as novas audiências emergidas da nascente sociedade de consumo e sua cultura de massas e principalmente, uma poética que enfrentasse o irrefreável conflito social e ecológico que se advinha. Parra declara com plena autoconsciência: “É preciso revisar a história da cultura e ver em que momento a linha que vai do paraíso se desvia para o inferno”. A pesquisa o conduz à antipoesia. Descobre que já não há tempo nem álibis para seguir ocultando nem disfarçando as pulsões inconscientes que motivam a destruição da nossa espécie e seu meio (ecocídio). Para ele, a primeira tarefa será agir ali onde se articula esse grande desastre ecológico: as premissas de nossa herança civilizacional. Este diagnóstico, compartilhado pelos principais pensadores da segunda metade do século, o obriga a trabalhar na desconstrução dessa maneira metafísica de habitar a linguagem e começando pelo esteticismo e o status platônico dos poetas:
Os poetas desceram do Olimpo
(Manifiesto, 1963)
O impacto no público foi imediato. A crítica, que não podia conceituar as mudanças introduzidas pela antipoesia, desfrutava igualmente do seu jogo. Essa contradição, tecida pela distância que há entre aquilo que se desfruta e o que se entende foi precisamente o anúncio da ruína definitiva da deteriorada consciência metafísica.
NOTHING SERIOUS
BUT MYSTERIOUS
(Artefactos, 1972)
O novo jogo introduzido por Parra não deixa pedra sobre pedra e ri de tudo, enquanto instala no cenário regional aquilo que chamo de transmodernidade latino-americana, articulação local inseparável dessa matriz cultural planetária que se conhecerá como pós-modernismo.
ORA ORA
Eu achava que os ingleses usavam penas
(Artefactos, 1972)
A antipoesia se articula com os atributos da fala cotidiana chilena: dessa forma, inaugura uma escrita para todos, mas que, paradoxalmente, ninguém poderá apropriar-se! Ela cria condições para que o leitor através de sua leitura transcenda a simplicidade e a complexidade e assim descubra o jogo que está sendo jogado. De fato, a experiência da compreensão introduzida pela antipoesia não só gera um novo registro neurolinguístico: libera o leitor contemporâneo da metafísica e do pragmatismo agindo na restauração da riqueza lúdica da experiência da linguagem. Não podemos esquecer que a linguagem não apenas “significa”, mas também “age” e essa dupla condição será um caminho para a leitura antipoética. Enquanto a escrita e a leitura metafísica mantém o leitor submerso numa compreensão semântica da linguagem, a antipoesia o faz vivenciar, também, a dimensão ativa (compreensão pragmática) e não só isso, pois ela joga com esses recursos da linguagem para que o leitor aceda ao “reino da linguagem”. A compreensão antipoética emerge precisamente da desconstruçãode ambas modalidades de leitura. Parra define isto como “uma escrita que se apaga a si própria”. Esta questão é fundamental! A sofisticada radicalidade do paradoxo anti-poético consiste em integrar o que está separado, negando-o! Seu jogo permite ler a simplicidade (aquilo que separa, que é disjuntivo) e a complexidade (aquilo que reúne, que é conjuntivo), assumindo-as e finalmente transcendendo-as! A ação antipoética trabalha o que nos foi herdado e vai além dessas grandes matrizes culturais, liberando o leitor de toda forma de apropriação e de todo determinismo:
COMPANHEIROS
Roga-se não confundir gue gue com güe güe
SUPLICA-SE NÃO CONFUNDIR
A arte na revolução com a revolução na arte
(Artefactos, 1972)
Não surpreende então que a nossa racionalidade já não possa conceber nem trabalhar nesse novo cenário textual: sua dependência à simplicidade já deve de um vício que se torna inoperante diante de uma obra que se alimenta e simultaneamente se desfaz do que foi herdado:
FUME LOGOS
O cigarro
Dos filósofos ocidentais
(Artefactos, 1972)
Enquanto a leitura metafísica (fundada nesse logos) só experimentava a dimensão semântica da linguagem enquanto a leitura pragmática permitia experimentar a dimensão ativa (seu significado perlocutivo e performativo), a leitura direta desfruta e goza (por tanto compreende) espontaneamente o jogo antipoético, integrando e transcendendo essas posições. A antipoesia cria as condições para que surja este novo leitor. Isto explica algo inaugural em nossa cultura: Na antipoesia, o valor das interpretações (sejam elas metafísicas ou pragmáticas) resulta secundário, pois na prática o público desfruta (compreende) seu jogo de maneira direta e concreta.
COMO VOCÊS PERCEBERAM
NOS ENCONTRAMOS
NA PRÉ-HISTORIA DA POESIA
(Artefactos, 1972)
Pois então, o trabalho interpretativo semântico é necessário e é parte do jogo. Bem como transcender esse modo de compreensão. De fato, as premissas metafísicas nos permitem ler com ferramentas convencionais (simples) o que expressamente não é, ler com padrões filosóficos e culturais pré-ecológicos uma escrita que joga e problematiza precisamente a herança pré-ecológica, em todos os níveis da experiência. Na verdade, todo leitor (incluindo aquele que depois se transformará em crítico) ao experimentar este jogo, atualiza a mudança estético-cultural. Estamos longe, pois, daquilo que se entende e espera da poesia:
4-. A poesia passa — a antipoesia também
5-. O poeta fala para todos sem fazer diferença com nada
6-. Nossa curiosidade nos impede muitas vezes de gozar plenamente a antipoesia por tentar entender e discutir aquilo que
não devemos.
(Hojas de Parra, 1985)
Como entender esse barulho conceitual? Toda a antipoesia é um exercício para sair das armadilhas metafísicas: aquelas que mantém nossa civilização encadeada e cega aos processos destrutivos, de dominação e apropriação que ela instala. A antipoesia trabalha para que o leitor experimente a mudança ecológica, aquela que consiste em não renunciar à história nem ficar preso a ela. Por isso, não podemos esquecer que a experiência anti-poética não destrói nada: ela assume a complexidade emergente em nossa cultura indo além. A antipoesia cumpre e excede aquilo que herdamos:
Sem Mistral, sem Huidobro, sem Neruda
Não há poesia, nem antipoesia
Inclusive, retiro o que eu disse
Leiamos essa particular experiência desconstrutiva da estética metafísica. Para começar, o leitor não renuncia à leitura semântica (interpretação). Pois bem, o falante do texto diz, contradiz e posteriormente se desdiz, problematizando a leitura meramente semântica, pois o significado obtido fica alterado pelo jogo de efeitos pragmáticos (ação) que o próprio texto gera: esse não tenta afirmar e negar uma simples filiação ao esteticismo herdado, mas através do seu jogo age e faz surgir a compreensão complexa dessas propostas (poética e antipoética) distanciando o leitor de ambas. Em outras palavras, ao referir-se às vozes mais representativas da poesia chilena contemporânea mediante recursos complexos como a contradição e a denegação, essa escrita exige aceitar e rejeitar radicalmente sua filiação (e compreensão) como poesia e antipoesia, pois ela se articula além da simplicidade de essa oposição estético — metafísica. E aqui tocamos o ponto central desta poética que não se sustenta senão em seu próprio jogo: o texto nos faz compreender que não é suficiente definir a “antipoesia” no horizonte daquilo que é e não é poesia ou literatura (“detesto a literatura / Tanto ou + que a anti-literatura”), senão que teremos que assumir radicalmente esse jogo de contradições, pois só assim experimentaremos a complexidade. Porém, o significado também não é alcançado ali, pois, como vimos, transcende esse dualismo indo além ludicamente com essa denegação: inclusive retiro o que eu disse. O leitor fica sabendo do que precisa saber e também apaga esse saber empurrando-o ao vazio...ao silêncio...à nada! Mas deixando os registros. Na antipoesia, tudo é retratação daquilo que foi dito! Mas esse nada (que é outro nome da morte) age como antídoto contra as milenárias práticas dos saberes de dominação!
*
Experimentamos um novo saber (um saber cujas regras impedem assumi-lo como saber). Que paradoxo! Desse modo, a antipoesia cria as condições para que o leitor se converta em autor e aprenda a jogar o jogo:
E É VOCÊ QUEM ME PERGUNTA?
Antipoesia é você!
(Obras Públicas, 2006)
O leitor é interpelado para agir e sair da posição digestiva e passiva na qual era mantido pelo esteticismo! O leitor é instalado numa experiência que une o simples e o complexo, levando-o a vivenciar a riqueza e o mistério deste jogo da linguagem poética (e através deste jogo, vivenciar a riqueza do mundo e do saber sobre o mundo):
O que dirá Derrida de tudo isto?
Vive la différance
Que dúvida cabe
Mas o que é a diferença para ele?
O registro!
E o que é o registro?
O registro derridiano não é:
Não é nada
E não pode ser enquadrado
Na pergunta metafísica “o que é?”
Capisco?
(Discurso de Guadalajara, 1991)
É a organização complexa da escrita que faz surgir este leitor ativo que deve vivenciar o jogo daquilo que “é” e “não é”, já que a antipoesia, ao afirmar, negar e denegar, não diz nada! A anti-poesia revoluciona o leitor: o faz exercer ativamente sua autonomia diante do significado dessa “página em branco”**, outro nome dessa incomensurável nada poética:
O dever do poeta
Consiste em superar a página em branco
Duvido que isso seja possível
(Obra Gruesa, 1969)
Não se trata apenas de uma mudança no estatuto do saber (em seu devir antiestético) senão uma mudança no estado de ânimo cultural: por isso que para a antipoesia “o saber e o riso se confundem”
É um erro muito grande
Levar o mundo a sério
A verdadeira seriedade é cômica
(Also Sprach Altazor, 1993)
Esta distância cosmológica da antipoesia com o esteticismo sofredor e sua gravidade metafísica se afunda muito além do prazer da leitura. De fato, a antipoesia faz do humor uma função narrativa essencial, consagrando-a à gratificação existencial e à recuperação da coesão lúdica da comunidade (função estética) tal como é assinalado na conhecida “Advertência” ao leitor:
Eu não permito que ninguém me diga
Que não compreende os antipoemas
Todos devem rir a gargalhadas
Para isso me rompo a cabeça
Para chegar na alma do leitor
(Versos de Salón, 1962)