Janio Santos sobre Reprodução

 

Eu, de minha parte, serei algo bem inferior e pequeno. A sensação que me diz que assim será é tão completa e inabalável como um fato consumado. Deus meu, e ainda assim tenho toda esta coragem de seguir vivendo? Que há comigo? Muitas vezes, sinto certo medo de mim, mas não por muito tempo. Não, não, confio em mim. Mas não é isso verdadeiramente cômico?”

Robert Walser em Jakob von Gunten.

 

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Uma rápida pesquisa no Google e logo encontramos a imagem do corpo do escritor suíço Robert Walser estendido na neve, no Natal de 1956. A foto é tão crua, que parece montagem, uma apropriação do seu momento final ou mesmo o cartaz do filme Fargo, dos Irmãos Coen, que descreveu a morte como longa extensão entre o trágico e o ridículo. A fragilidade daquele corpo cercado pela solidão da data magna do inverno, no Hemisfério Norte, diz muito sobre a obra que ele construíra: uma literatura para ser apagada, para ser anônima, uma espécie de contravenção perante o século 20, o século da imagem.

 

Walser apadrinha o desejo de ser borrado, de se apagar se reconstruindo num outro e o fascínio pelo desconsolo dos personagens de Associação Robert Walser para sósias anônimos, de Tadeu Sarmento, um dos vencedores do Prêmio Pernambuco de Literatura (veja mais detalhes na página 22). Um romance que se posiciona crítico, triste e às gargalhadas no centro da batalha de um século não mais da imagem, mas da autoimagem. Nada menos Walser. Nada mais Walser.

 

“Robert Walser é minha paixão. Um caso único na literatura. Seu desejo por desaparecer funciona, no meu romance, atrelado ao desejo de ser outra pessoa. Daí ele ser o patrono da Associação. Escrevia a lápis, logo, sempre à margem da possibilidade de apagar o que escreveu. Internou-se voluntariamente em um hospício. Sua escrita é repleta de ironia, duplos negativos, como se duvidasse dos próprios pensamentos durante o próprio ato de pensar, como se tudo o que pensasse fosse escrito com o dedo sobre um espelho embaçado. Há anos admiro sua escrita próxima da extinção da própria escrita, como se o pudor de Walser o tornasse incapaz de nomear o essencial, fazendo com que ele ficasse falsamente patinando na superfície, como um náufrago mental”, comenta Sarmento sobre o uso de Walser como símbolo em seu livro.

 

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Pois chegamos ao ponto de esquecer quem éramos. Quer dizer, no fundo sabemos que nunca fomos muita coisa. Mas alguns (os casos mais sérios, o que significa dizer: todos) sequer lembram o nome que tinham quando não eram ninguém. Nada é mais engraçado do que isto:

Ser um sósia não significa, necessariamente, que você tenha algum problema pessoal consigo mesmo: a paixão de querer ser outra pessoa é sempre menor que a de esquecer quem você é’”

Tadeu Sarmento em Associação Robert Walser para sósias anônimos.

 

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O romance de Sarmento perfila seus sósias diante de nós com um enorme cuidado e detalhamento antes que eles sumam, ou em algum lugar dentro de si mesmos ou no reflexo de suas fixações. Estão lá “Yoko Ono”, “Yeshua”, “Van Gogh”, “Silvio Santos”, “John Lennon” tragicamente não muito distante de “Mark Chapman” — quis lançar mão das aspas no meu texto para não me confundir em relação a quem estava falando, afinal sósias são espelhos e espelhos nos engolem, já avisaria a Alice de Lewis Carroll. Esses pequenos perfis ao final da obra formam uma espécie de bestiário, lembrando A história universal da infâmia, de Borges, e La literatura nazi em America, de Roberto Bolaño (inédito no Brasil).

 

“É um recurso (o do bestiário) que Marcel Schwob trouxe à luz, Borges aprimorou e Bolaño deu o verniz de uma cosmogonia. Apenas me inscrevi em uma tradição, não sei bem se se trata de um ‘bestiário’, no meu caso. É uma maneira eficiente de apontar desdobramentos para personagens que não tiveram suas ‘aparições’ bem-resolvidas na narrativa. Falo até mesmo de personagens secundários, sem grande importância na trama, mas que no apêndice adquirem uma nova estatura, que tanto pode clarear sua participação na estória quanto sugerir a possibilidade de uma continuação em outra obra”.

 

Enquanto a cosmogonia/bestiário criada por Sarmento nos observa, o livro se constrói a partir de frases de efeito e de máximas que se colocam e se sabem vazias, erguidas justamente pela beleza desse vazio, em momentos como “Não progredimos, enfim. E se tudo o que cresce é só repetição de algo que estava menor, podemos dizer que Hussein é um instrumento e que nós somos uma frase musical que virá no mesmo volume, caso o mesmo instrumento a chame do mesmo jeito” ou “O esquecimento também tem seus prediletos”. Ao fazer emergir essas máximas pelo texto, a impressão é de que Sarmento quer tratar da ideia da sua obra, da discussão teórica que sua obra levanta, de forma menos epidérmica.

 

“Não é minha intenção fazer teoria literária com esse romance. De qualquer modo, o limite entre teoria literária, ensaio, poema e romance foi quebrado, acredito que desde Melville. Um bom romance que abarque todas as linguagens literárias, como o Ulissesdo Joyce ou os monumentos do Pynchon, pode até ser o sonho de todo escritor, uma massagem em seu ego de ave de rapina (embora escritores não passem de pardais), mas é muito perigoso de ser feito. Corre-se o risco de inchar uma obra com informações cruzadas desnecessárias que entediarão o leitor. Corre-se ainda o risco de se soar pernóstico com certa erudição de almanaque. Devemos usar sempre a régua e a tesoura sugeridas por Graciliano Ramos: tudo deve funcionar à narrativa, se não funciona, então é só um virtuosismo patético e deve ser descartado sem medo nem orgulho. Cortar é mais importante que escrever. O segredo da escrita é chegar ao nível de precisão de uma cabine pressurizada.”

 

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“‘O que mais gosto daqui é da vista’, disse Mark, sempre olhando para baixo, inclinando ao máximo o corpo na tentativa de parecer ainda menor do que é, e o dedo engatilhado, apontando para a janela aberta, sem fitá-la.

Mas a janela dá de frente para uma parede’

Por isso mesmo’

Que a parede não permite a dúvida, continuou Mark quase balbuciando, também nenhuma certeza consoladora. A parede é só uma parede. Silenciosa. Cinza. Caiada.”

Outro trecho de Associação Robert Walser para sósias anônimos.

 

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O livro vencedor do Prêmio Pernambuco de Literatura é o segundo romance de Sarmento. O primeiro (e também apadrinhado pelo nome de um escritor), Lautreamont press, permanece inédito. O autor já publicou outros dois títulos: um livro de contos em 2005, pela Fina-Flor de São Paulo (Breves fraturas portáteis) e um de poemas em 2012, pela Bartlebee, de Minas Gerais (Paisagem com ideias fixas). “O de contos disponibilizei aqui http://pt.scribd.com/doc/197194462/Breves-Fraturas-Portateis, já que minhaeditora fechou e todas as testemunhas desapareceram. O de poemas pode ser adquirido aqui http://www.bartlebee.com.br/. O pedido demora um pouco, mas chega. É que meu editor e amigo Daniel Valentim trabalha com impressão por demanda e, ainda por cima, resolveu abrir uma padaria para vender sonhos e rabos de galo.” Escreve ainda no blog visoesdeezequiel.wordpress.com, em que, de certa forma, faz de cada postuma extensão da sua literatura, como quando do “conto” (aspas são aqui necessárias) publicado no último dia 1º de janeiro:

 

“Adoro a cidade-fantasma do primeiro dia do ano. Gosto desse silêncio que soa como a suspensão de todas as esperanças, como um arco estendido sobre a boca de um vulcão extinto. Algumas horas atrás os copos estavam cheios e nossos olhos brilhavam iguais a balões azuis com gás do riso. Algumas horas atrás perdemos a conta da felicidade, confundindo nossas taças de champanhe sobre a mesa com outras taças de champanhe sobre a mesa, já que é sempre necessário colocar as taças sobre a mesa para abraçar os amigos. Depois não sabíamos mais qual era de quem, mas bebíamos assim mesmo, excitados pelo tumulto simples de uma alegria guardada há tanto tempo. Os cientistas dirão que nada aconteceu. Os filósofos dirão que não houve nada de novo além de um dia após o outro. Mas não somos cientistas, não somos filósofos. Somos poetas. Comerciamos espelhos com nossos próprios assassinos”.

 

A quantidade de referências literárias aproxima Associação RW da obra de nomes como Enrique Vila-Matas, sobretudo em obras como História da literatura portátile Ar de Dylan, que descreve um clube de fracassados. Mas, para o futuro, Sarmento quer se distanciar da possibilidade de ser um escritor de escritores. Quer tirar a ficção do foco de criação da sua ficção.

 

“Tanto quanto taxistas ou qualquer outro. Mas não pretendo me tornar um novo Vila-Matas e escrever livros hipersaturados de referências. Não quero ser um escritor lido só por escritores, críticos e outros golfinhos. Associação RWé meu segundo romance nessa linha (na falta de termo melhor) metaliterária(o primeiro é meu inédito Lautreamont press) e será o último. Ainda assim, tive o cuidado de deixar o primeiro plano de sua leitura a mais prazerosa e clara possível. Demorei muito para simplificá-lo, sua versão inicial tinha umas trezentas páginas. Quero ser lido por leitores comuns, não especializados. O vigia noturno do prédio onde moro vara seu expediente lendo Nicholas Sparks. Se em breve ele não trocá-lo por mim então terei fracassado na minha intenção. O fato de o narrador do romance ser um escritor obedece a um propósito, pois, para mim, o escritor é o clímax da arte de ser sósia. Assim como os atores, os apaixonados e os usuários do Facebook. No fundo, todos queremos ser outra pessoa.”