A literatura brasileiraé um gatinho perdido no meio do trânsito, precisando ser salva pra não ser atropelada? Escritor independente no Brasil é um dente-de-leão debaixo da chuva? Um autor nacional prescinde do Estado ou do mercado para ser conhecido? A literatura de vanguarda pode se tornar mainstream? É possível que a literatura ganhe visibilidade do público sem a mãozinha governamental? Como uma província longe do nefando eixo Rio-SP pode revelar ao público seus novos escritores, e, ao mesmo tempo, distanciar-se de regionalismos, sotaques, folclorismos e “cor local”, buscando dialogar com a grande literatura do país e do mundo?
O leitor poderá pensar que falo do Pernambuco, mas estou falando é do Nicolau. Imagino que as questões do primeiro parágrafo tenham caraminholado pelos inventores deste suplemento literário — assim como dialogaram com as minhocas nas cabeças paranaenses de 1987, ano da fundação do excepcional mensário de literatura sediado em Curitiba. Porque se o circo editorial brasileiro deu um salto impressionante desses 30 anos para cá, parece que nos debatemos com questões semelhantes à época da renascente democracia brasileira: produção plural, mas escassos leitores, escassa circulação, escassa crítica, escasso eco na sociedade. É um vexame saber que um livro leva em média três anos para esgotar sua tiragem inicial de 2 mil exemplares, em um país de 200 milhões de pessoas — e dessas, 60% afirmam não ter comprado um único título nos últimos seis meses (pesquisa Sesc/ Fundação Perseu Abramo, http://www.sesc.com.br/portal/site/publicosdecultura/pesquisa/).
Com tal cenário se digladiava o paulistano João Antôniono artigo “No país dos enjeitados”, número 5 de Nicolau. O autor de Malagueta, perus e bacanaço— hoje clássico indiscutível, publicado luxuosamente pela Cosac Naify — esbraveja contra a ausência de leitores para gente como Manoel de Barros e Antonio Fraga. O fluminense, autor de Desabrigo, foi reeditado pela José Olympio em 2009, mas segue pouco lido. Já o poeta matogrossense, capa desta edição do Pernambuco, morreu no posto de um dos maiores escritores do país. De todo modo, o diagnóstico do autor paulista era correto, ao apontar a falta de interesse da mídia por artistas “fora do eixo”: “Há no país grande falta de vergonha”, diz. “O país continental tem um só polo cultural: Rio—SP, uma indisfarçável, raquítica e mal-encarada ditadura cultural, a ditadura da divulgação.” Este olhar fora do eixo era justamente um dos aspectos mais interessantes do Nicolau.
Mais bundas que cérebros
João Antônio foi um dos mais assíduos colaboradores do suplemento literário bancado pelo governo do Paraná e editado pelo escritor Wilson Bueno. Outro nome crucial era o curitibano Paulo Leminski, autor de poemas, traduções, críticas e textos tão inclassificáveis como seu bigode. Leminski é o poeta de maior sucesso da década nos últimos anos: em menos de dois anos, Toda poesia vendeu até agora 110 mil exemplares. (Como comparação, com 370 mil exemplares juntando todas as suas reedições, desde os anos 1990, Vinicius de Moraes éo poeta best-seller da Companhia das Letras.) O paulista/paranaense Valêncio Xavier também vivia nas páginas do Nicolau, e, ainda que vagando entre gêneros — contos, romances, romances gráficos — de difícil aceitação (embora sua linguagem seja cristalina, era tido como autor experimental), chegou a ter edição refinadapela Companhia das Letras na última década de vida. Por outro lado, há colaboradores ainda por ser redescobertos no âmbito nacional. Como o catarinense/paranaense Manoel Carlos Karam (Pescoço ladeado por parafusos), tem tido sua iconoclasta obra relançada pelas valentes Arte & Letra e Edições Kafka. Problemático é o caso do curitibano Jamil Snege, prosador de finíssimo trato, autor do belo e divertido Os verões da grande leitoa branca, cujas disputas de herdeiros por direitos autorais impediram-lhe as reedições.
O que estes números querem dizer? Existe a óbvia constatação que o mercado brasileiro se expandiu, segmentou-se e ganhou leitores. Percebe-se também que, ainda que arrojada, muito da literatura experimental e da literatura tida como “marginal” nos anos 1980 encontra-se hoje bem editada. Ou seja: de algum modo, aqueles 76 mil exemplares mensais de Nicolau encontraram, ainda que tardiamente, caixa de ressonância. O suplemento foi encartado em mais de 25 veículos de imprensa, chegou a ter mais de 20 mil assinantes e sua sexta edição circulou com o número recorde de 162 mil exemplares. Distribuídos pela secretaria de Cultura do Estado do Paraná e produzidos sob liberdade de imprensa (jura-se que a secretaria não precisava aprovar as pautas da redação, mas Wilson Bueno infelizmente não está mais entre nós para confirmar), cumpriram a missão de espalhar cultura numa época de economia difícil (sob os desastrados Sarney e Collor até o primeiro mandato de FHC) e democracia ainda manquitolante.
No entanto, os números também evidenciam a total incapacidade de o mercado editorial brasileiro em produzir um periódico literário independente da mão do Estado, de leis de incentivo ou de uma marca associada a seu conteúdo. No país não existe uma única revista nacional de literatura à venda em bancas — que mostram, aliás, mais bundas do que cérebros. Mesmo as revistas que se dedicam à cultura contam-se nos dedos. Em agosto de 2013, aprofundando sua estratégia de “downsizing”, a editora Abril “descontinou” a revista Bravo!— que tinha nascido em 1997, justamente no ano seguinte ao fim do Nicolau. Com pequena tiragem mas ainda independente do Estado ou de leis de incentivo, a revista Cult é uma das raríssimas publicações nacionais com boa parte do conteúdo voltado à literatura(embora seu foco sejam filosofia e sociologia).
Também mantido pelo governo estadual, no caso Minas Gerais, o Suplemento Literário fundado por Murilo Rubião em 1966 sobrevive como o mais antigo exemplar de sua espécie — um rinoceronte branco da cultura nacional. O Nicolau só voltou à tona graças ao Estado e à obsessão de gente como Rogério Pereira, criador do suplemento literário gratuito Rascunho, hoje à frente da Biblioteca Nacional do Paraná, responsável pela republicação do periódico — e também pela existência de outro bom periódico de literatura, o Cândido (que prossegue, desde o Joaquim tocado por Dalton Trevisan, a esquisita mania paranaense de dar nomes masculinos a jornais literários).
Ciranda do Incentivo
“Eu vou fazer uma ciranda/ pra botar o disco/ na Lei de Incentivo à Cultura/ Mas é preciso entrar no gráfico/ Mas eu não sei negociar/ Eu só sei no máximo tocar meu tamborzinho e olhe lá”, canta a musa Karina Buhr, zoando a dificuldade do artista brasileiro em se viabilizar economicamente na era da reprodutibilidade digital. Ou, se você quiser ver assim, zoando o fracasso do empreendedor brasileiro em cirandar economicamente um produto cultural sem lei de incentivo ou apelo ao Estado ou a uma marca (como a Livraria Cultura, que patrocina a Revista da Cultura, ou a Natura, que abre editais para perfumar, digo, patrocinar trabalhos musicais).
É claro que, apesar da pantanosa e semovente situação da indústria cultural transfigurada de modo dramático pela internet, há muitas outras maneiras de sobreviver sem anúncios publicitários separando uma matéria da outra. Uma das melhores revistas literárias do planeta, a The Believer, da editora McSweeney’s, renomada pela excelência gráfica e pela audácia de suas publicações — um espelho de seu fundador, o incansável escritor Dave Eggers (O círculo) —, pertence a um organização sem fins lucrativos. Pois é, do mesmo naipe do Greenpeace ou da WikiPedia. Na página da McSweeney’s há pedidos expressos de doações ou de trabalho voluntário. Claro, ela também funciona à base de assinaturas e vendas de produtos — de camisetas a canequinhas descoladas.
Sim: funciona. Nos EUA, onde no século 19 um sujeito como Edgar Allan Poe já vivia (mal e mal, mas vivia) à base de colaborações regulares para revistas literárias de várias cidades, pipocam novos empreendimentos culturais alternativos. Mantidos à distância de diretores de marketing de empresas que renunciam o pagamento de seus tributos — para fazer uma bela figura com isso (não é o Itaú quem banca o instituto Itaú Cultural, e sim o dinheiro captado pelo Itaú junto a empresas via Lei de Incentivo à Cultura).Há modelos tradicionais como o site The Atavist, de jornalismo literário, que funciona à base de assinaturas ou de venda de reportagens, ou a revista n+1, mantida graças a doações, microassinaturas e investidores privados. Ou ainda, pra falar nos hermanos, sempre a nos despertar inveja, a revista Orsai, chegando direto a seus leitores sem intermediários.
Nicolau descabaça Arnaldo
Além de paranaenses como os supracitados ou Alice Ruiz, Domingos Pellegrini, Rodrigo Garcia Lopes, Ademir Assunção e o próprio editor, o grande Wilson Bueno, o Nicolau publicou Hilda Hilst, Sérgio Sant’Anna, Milton Hatoum, Paulo Henriques Britto e Bráulio Tavares e muitos outros autores que então firmavam a sua literatura. Também tinha jornalismo — em especial tocado pela brava repórter Adélia Lopes —, e trazia conteúdos tipo um depoimento histórico de Luiz Carlos Prestes, além de entrevistas com artistas, de Paulo Autran a Jorge Luis Borges. Dava voz a escritores já consagrados, como Rubem Braga, Fernando Sabino, Ferreira Gullar e José J. Veiga, e trazia traduções de nomes pouco conhecidos aqui, como Gary Snyder ou Marina Tsvetaéva. E ainda revelava nomes que mais tarde se tornariam centrais na cultura contemporânea — como Arnaldo Antunes, que começou a publicar ali seus primeiros poemas pós-concretos.
Tudo embalado em 32 páginas de pura invenção gráfica monocromática por gente do naipe de Luiz Antonio Guinski, o idealizador do projeto visual, que acabou saindo da equipe original devido a tretas com o secretário de cultura. Mesmo após a saída, Bueno seguiu responsável por deixar o diretor de arte fazer na buena cada número absolutamente diferente do anterior e do seguinte, experimentando com fontes, diagramações, imagens, quadrinhose até mesmo bulindo com o logotipo — ousadia a que poucas publicações brasileiras se permitem.
As 1828 páginas do Nicolau são um tesouro que parece inesgotável, e é uma feliz coincidência que o Estado, através do atual governo paranaense, retome essas preciosidades, ressignificando uma prática de um governo anterior — algo raro, sabemos, nesse país em que o próximo prefeito joga o rolo-compressor por cima do jardim plantado na administração passada. Vou seguir sonhando, porém, com um país em que nem Estado nem publicidade nem corporações nem atalhos tributários sejam os responsáveis diretos pelas publicações literárias. Nem política de Estado nem política de mercado, e sim os próprios leitores: cada vez mais vivemos em uma sociedade em que se prova ser possível que a audiência dialogue, contribua, fomente, estimule e até invente o seu conteúdo — e pague, parando com essa mania de achar que cultura tenha de ser um agradinho grátis.
Bom, sonhar não custa nada; nem o Nicolau, que tem todos os seus números abertos na internet (www.bpp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=66.). Agora, se você quiser deixar de serpão-duro e alimentar sua biblioteca, os 60 exemplares podem ser seus, em três belas caixas, pela merreca de 50 dilmas, o mesmo que se paga por uma porção de torresmos gourmet em um restaurante hipster. Abrir a mão deveria ser o primeiro passo para um indivíduo ter a cabeça aberta — antes que seja tarde demais e algum energúmeno venha abrir a sua a marretadas.
Serviço: Reedição fac-similar dos 60 números do jornal Nicolau, publicado originalmente de 1987 a 1996 pela Secretaria de Estado da Cultura do Paraná. Tiragem: dois mil exemplares. O fac-similar (60 exemplares em três caixas) será distribuído para bibliotecas e entidades culturais e também poderá ser adquirido por R$ 50 diretamente na Biblioteca Pública do Paraná. Mais informações: (41) 3221-4917 e/ou Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..