“Nos últimos meses,li uma série de romances de jovens escritores africanos, entre os quais o Americanah, de Chimamanda Adichie, A beleza das coisas frágeis, de Taiye Selasi, e A cidade aberta,do Teju Cole. O que distingue estes escritores das gerações mais velhas, dos ‘pais da literatura africana’, digamos assim, é a sua sofisticação e cosmopolitismo. Taiye Selasi, a mais recente revelação das letras africanas, é um bom exemplo do que acabo de dizer: nasceu em Londres, em 1979, e foi criada em Massachusetts, nos Estados Unidos, filha de um casal de médicos, mãe nigeriana e pai ganês. O livro dela, como o de Chimamanda e o de Teju Cole, traduz essa errância pelo mundo e um certo desapego às tradições. Ou melhor, creio que eles já não vivem o dilema estafado e enfadonho do confronto entre tradição e modernidade. A tradição só lhes interessa na exacta medida em que lhes permite afirmar uma certa modernidade. Ou enfim, como dizes, e muito bem, o pensamento deles tem mais asas que raízes. Trata-se — diz-me lá se não tenho razão — de uma geração pós-nacionalista: por um lado, estão mais preocupados em afirmarem-se como escritores do que como nigerianos; por outro, são bons saltadores de fronteiras, sentindo-se à vontade tanto em Lagos como em Londres ou Nova Iorque. As obras que produzem refletem com grande refinamento esta cultura global, e também por isso respondem a questionamentos que podem ser experimentados quer por um jovem nigeriano, quer por um qualquer habitante de Londres, Paris ou Lisboa dos nossos dias (para citar apenas três cidades com profunda influência africana).”
O texto citado acima faz parte de uma série de cartas que a revista literária Granta — Portugal, em sua quarta edição, publica entre os escritores José Eduardo Agualusa (Angola, 1960) e Mia Couto (Moçambique, 1955). Na saborosa troca de missivas entre os amigos há espaço para falar de futebol, sobre os livros que estão escrevendo, sobre o passado e o futuro das terras de ambos, e sobre a atual literatura africana. Ainda na carta citada acima, Agualusa diz a Mia Couto: “Creio que tanto em Angola quanto em Moçambique temos muito a aprender com estes exemplos. A letargia em que caiu a literatura angolana tem a ver com uma série de motivos, entre os quais o escasso investimento na cultura e na educação. Acredito, contudo, que passa também por um fechamento ao mundo — a prevalência de um nacionalismo estreito, de que estes jovens escritores já se libertaram. Admito que possa haver boas surpresas na literatura angolana nos próximos anos, mas presumo que os seus protagonistas serão (como está a acontecer na Nigéria) jovens nascidos no estrangeiros, ou com uma larga vivência no exterior, com acesso à grande literatura universal e a todas as expressões de modernidade.” Na resposta, Mia Couto fala da diáspora dos escritores africanos, e pontua: “Uma vez participei numa conferência internacional de literatura africana. Era uma mesa redonda de uns dez escritores e eu era o único que vivia em África”.
As cartas de Mia e Zé, como carinhosamente se chamam nas mensagens, são apenas uma das atrações da revista portuguesa. Nascida há dois anos, a Granta Portugal, uma versão da prestigiada revista literária criada por estudantes da Universidade de Cambridge em 1889, escolheu como assunto para o seu quarto número a África. Antes, os temas havia sido mais subjetivos: Eu, Poder e Casa. Ou não será que a ideia de África é algo tão difícil de descrever e pessoal como os assuntos anteriores? Com a palavra Carlos Vaz Marques, editor da publicação: “O que aqui se apresenta são partes da África.Pelo confronto entre os textos traduzidos da Grantade língua inglesa com os inéditos de autores de língua portuguesa escritos para esta edição é possível perceber de um modo muito agudo quão diverso é um continente tantas vezes tratado como entidade homogénea. Todos estes textos, todos estes autores são casos singulares. Nada disto é a África, tudo isto é África. Caso a caso, história a história, num puzzlede vidas e culturas impossível de reduzir a um desenho único. Como já alguém escreveu, os plurais são sempre totalitários”, diz. “África foi-me servida desde a infância como um cliché. O tempo dos clichés está longe de ter acabado”, acrescenta o jornalista e editor português.
Tentar encontrar algo em comum num universo tão grande. Em escritores que tiveram vidas tão diferentes e influências literárias completamente distintas — até por conta da história de reparto do continente entre “potências” no século passado - funciona? A proposta é ousada e perigosa, mas o resultado é positivo. A revista funciona justamente porque não pretende fazer um retrato, mas talvez muitos e oferecer ao leitor um mosaico que pode, esse sim, dizer algo sobre esse pedaço do mundo — e da literatura que se faz ali ou a partir dali - tão atraente quanto desconhecida pela grande maioria dos que não são de lá.
Por dentro da Granta
Durante 350 páginas a publicação traz uma ampla variedade de textos (diários, ensaios, contos, memórias, cartas, crônicas e extratos de romances) assinados por escritores — jovens ou nem tanto - cuja relação com a África são as mais diversas: filhos de portugueses nascidos nas antigas colônias, portugueses que se tornaram africanos quando houve a descolonização, filhos de africanos nascidos na Europa ou na América, europeus que foram atraídos pelo continente e vice-versa. Ilustra a revista um ensaio fotográfico de Délio Jasse que mostra uma África urbana, muito diferente do imaginário coletivo, e desenhos de Alain Corbel, um francês radicado nos Estados Unidos que tem como área de pesquisa os países lusófonos do continente africano.
Teju Cole pode ser uma boa imagem do complexidade que o rótulo “escritor africano” acaba por esconder. Nascido em Nova Iorque (1975), viveu a infância e parte da adolescência na Nigéria (terra dos pais). Escreve em inglês e a presença da África é uma constante em sua obra. Open city, romance que impulsionou seu nome e lhe rendeu vários prêmios, é fruto do olhar de um filho de imigrantes em uma Nova Iorque pós queda das Torres Gêmeas. Em A água não tem inimigos, texto publicado na Granta, Teju Cole se debruça sobre o significado de regressar a uma terra que ao mesmo tempo é e não sua. “Aquilo que sinto de cada vez que entro na Nigéria não é propriamente pânico; é antes uma impressão de fragilidade, de ser agora mais vulnerável a acidentes e incidentes, como se um qualquer véu de proteção invisível me tivesse sido retirado, e o destino, com toda a sua hostilidade acumulada, me pudesse vibrar um dos seus golpes a qualquer momento”. E prossegue: “Quando estou nos EUA, discuto com os que acham que Lagos é um lugar demasiado perigoso para se visitar. Digo-lhes que cresci nesta cidade, que deambulei pelas ruas de Lagos durante dezessete anos, sem que nada de mal me acontecesse. Faço notar que é uma cidade de vinte e um milhões de habitantes, que acordam de manhã, escovam os dentes, vão para o trabalho, suportam as contrariedades, ficam parados nos engarrafamentos, chegam a casa à noite para jantar com os filhos e vêem telenovelas antes de irem para a cama e começarem tudo de novo no dia seguinte. Há infra-estruturas modernas, há divertimento, há tédio; não é um campo de batalha. As pessoas de Lagos levam vidas normais em circunstâncias normais, assim como sucede com as pessoas de Londres, de São Francisco e de Jacarta.” Embora desmitifique alguns clichês, o escritor termina por descrever a existência de uma violência e tensão na cidade que ele e os amigos “adoram detestar”. Relata um assalto àluz do dia: “O homem não para de gritar. Nunca me tinham apontado uma arma carregada. Quem é este homem? Que abismo de miséria o levaram a este extremo? Fuzila-nos com um olhar tão duro, tão empedernido, que estou certo de que não nos vê, de que vê apenas o que imagina que nós representamos”. E demonstra que tudo, por sorte, é mais complexo do que os olhares estereotipados que os jornais nos tentam vender.
Também há espaço na publicação para a simplicidade e a beleza da vida, como no relato que Mia Couto faz sobre sua infância vivida numa casa colonial em Quando me fiz escritor?. “Numa outra ocasião me terei feito escritor: quando os meus pais nos contavam histórias. Não se tratou nunca do valor das histórias, que delas não me recordo. O que lembro, com fulgor de coisa viva e presente, é a paixão que a minha mãe e o meu pai colocavam no contar dessas fábulas. Era como se, mais do que a nós, eles invocassem vozes antigas que faziam contas com a saudade da sua terra natal e faziam regressar os ausentes. Era uma espécie de missa, de momento sagrado”. Aminatta Forma, escritora escocesa que cresceu entre Serra Leoa e Reino Unido, também traz beleza e humanidade em O último veterinárioao contar sobre o salvamento de Mathilda, uma cachorra que tirou da rua em Freetown. Um dia a cadela desapareceu. Foi achada por um vizinho na estrada, havia sido atropelada. Levaram-na embrulhada numa toalha ao veterinário, que não tinha um Raio X. Conseguiram que em uma clínica privada lhes deixassem usar o aparelho. O resultado foi que, por sorte, a cachorranão havia fraturado a bacia. Não seria necessário sacrificá-la. “Com o tempo, a Mathilda foi recuperando, embora ficasse com um característico saltitar de lado. Certo dia, durante um jantar no Alto Comissariado Britânico, contei esta história. Os meus ouvintes eram sobretudo expatriados, pessoas enviadas para o país na sequência da guerra, por esta ou aquela questão. Um homem protestou com a perda de tempo e de dinheiro com um animal num país onde as pessoas tinham tão pouco.” Para a escritora, não havia contradição naquele gesto que de solidariedade a um bicho que envolveu várias pessoas de um dos países mais pobres do mundo. “Não vi tolice nem complacência em todas essas pessoas que se reuniram num único dia para salvar a vida de um cão de rua. O que vi foi compaixão, sentido de comunidade, azedume adoçado. Por outras palavras: vi esperança”.
A Granta dedicada à Africa fecha com um provocativo texto do queniano Binyavanga Wanaina, fundador da revista literária Kwani? e responsável por descobrir novos talentos das letras do continente. Sua crônica se titula Como escrever acerca de África e vem carregada de ironias como: “Certifica-te de que pões em relevo que os africanos têm a música e o ritmo impregnados no mais fundo da alma, e que, além disso, comem coisas que mais nenhum ser humano consegue comer”. Ou: “No teu texto, aborda África como se fosse um só país. É um lugar quente e poeirento, com ervaçais suavemente ondulados e enormes manadas de animais e habitantes altos e magros que estão cheios de fome (...) Não te deixe atolar em descrições pormenorizadas. África é enorme: cinquenta e quatro países, novecentos milhões de pessoas que estão demasiado ocupadas a passar fome e a morrer e guerrear-se entre si e a emigrar para lerem o teu livro”.
E porque embora África não seja só isso, mas também isso, há, nos vários textos que acompanham a publicação, espaço para paisagens e animais, e relatos sobre as guerras, o colonialismo e a miséria. As descrições variadas e ricas ajudam o leitor a pensar muito além dos clichês, e talvez sejam suficientes para convencê-los de que há, sim, algo — talvez um cheiro, um toque, uma atmosfera — que justifique o uso do selo “literatura africana” não só para facilitar a vida dos livreiros e fazer a alegria financeira das editoras. Algo que permite que o projeto de se editar uma revista literária cujo tema é África seja bem sucedido.