Bel Pedrosa/Divulgação

 

Homem acorda no meio da noite com a mente confusa, corpo despreparado para qualquer ação. E se vê atravessado pela dúvida: onde estou? Sabe apenas que está longe de casa, mas onde mesmo? Ah, sim, consegue recordar: hospedado num quarto de hotel no Recife, com vista para a praia de Boa Viagem. No dia anterior, participou de um congresso de literatura. As imagens começam a reaparecer na sua memória. Volta a ser ele próprio.Tenta tatear pelo quarto, mas não sabe bem o que fazer. Está em dúvida se valeria a pena voltar a dormir, porque em poucas horas precisa levantar e seguir para o aeroporto.

 

Decide olhar pela janela e se depara com as placas pedindo para que os banhistas não se aproximem do mar: há o perigo dos tubarões. Uma garota, há pouco, sofrera um ataque.

 

“Acabou por adormecer, mas não sem antes pensar que do outro lado da avenida havia a praia, onde podiam estar nadando tubarões a essa hora, inclusive o que matara a moça. E, com um arrepio, pensou no momento em que a fera cravara seus dentes na coxa da moça e que todos nós, de um modo ou de outro, podíamos ser atacados por monstros diversos” — É assim que Sérgio Sant’Anna traça suas reminicências de uma rápida passagem pelo Recife no conto Tubarões, presente em sua nova coletânea de textos curtos O homem-mulher.

 

É impossível falar da história do conto brasileiro sem colocar o nome de Sant’Anna na linha de frente. Em sua carreira ele já ergueu, destruiu e reinventou a sua própria escrita de inúmeras formas, promovendo experimentações que sempre fascinam os leitores. O que volta a ocorrer com a nova obra. O descompasso, mais do que comum, entre o real e sua representação coloca os personagens em busca de uma satisfação imediata dos seus desejos, afinal é preciso lidar com o vivido. Isso parece ser o ponto em comum das narrativas de O homem-mulher obra melancólica e atravessada por uma ironia que em nenhum momento se diz ausente.

 

Um dos momentos mais fortes é justamente o conto que dá nome ao livro, espécie de síntese da linha emocional da obra: homem encontra prazer se vestindo de mulher, para viver uma espécie de fantasia lésbica com suas parceiras. A cena em que esse personagem mantém relações sexuais com uma amante ocasional de carnaval, no fortuito de um cemitério de madrugada, é uma das mais belas da obra e mostra a capacidade de Sant’Anna em subverter o banal, fazendo com que imagens em espirais tomem conta da nossa imaginação: “Dalva ficou doida demais, o mundo rodopiava e ela vendo a lua, os túmulos e os vagalumes e ouvindo o barulho dos grilos, ao mesmo tempo que tinha certo medo de estar perto dos mortos. Mas nem teve tempo direito de sentir esse medo, pois Adamastor baixou a calcinha que estava usando”. E é nesse momento em que Adamastor se mostra como de fato é, que aquele caso de carnaval perdura pela eternidade de uma noite.