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Há várias lendas cercando o casal Zelda e Scott Fitzgerald — que o diga Woody Allen, que usou os dois em alguns dos momentos mais fortes do seu filme Meia-noite em Paris. Mas a minha favorita delas tem apenas Zelda como protagonista. Numa das suas crises (e aqui não iremos descrever o significado da palavra “crise”), teria chamado os bombeiros, alertando para um grande incêndio em seu apartamento. Ao chegarem ao local, encontraram apenas a escritora apontando para o seu próprio peito e avisando “é aqui, é aqui”.

 

A história, grande exemplo da tamanha ficção que é a realidade, até inspirou um verso de Ana Cristina César: “Chamem os bombeiros, gritou Zelda! Alegria, algoz inesperado”.

 

À sombra do marido que ergueu aquela que é — talvez — a maior obra da literatura norte-americana do século 20, O grande Gatsby, Zelda lançou no começo da década de 1930 seu único romance, a ficção infestada de fatos reais Essa valsa é minha, que traz o seu particular olhar sobre a chamada “geração perdida”, com uma veia irônica e melancólica. Alabama, filha de juiz sulista, tem sua vida simples virada pelo avesso quando conhece o renomado pintor David Knight.

 

O casal se muda para Nova York e de lá segue para Paris, onde passa a viver todos os perigosos prazeres da boemia. Mas entre uma festa e outra, entre um porre e outro, sempre perseguida pela sombra do marido, Alabama começa a se sentir entediada. Busca alguma coisa, não sabe bem onde (“é aqui, aqui”, talvez tivesse pensado) e a “crise” começa.

 

A crise que se alastra pela narrativa, como uma ressaca incurável, já é prevista logo na abertura do romance: “Essas garotas — diziam as pessoas — acham que podem fazer qualquer coisa e ficar impunes”. Frase momentosa e paradigmática, não apenas para o romance, mas para a própria vida de Zelda: Scott não ficara nada feliz de ver o livro da mulher revelar tanto sobre a privacidade do casal (que de privada não tinha nada, já que estamos falando das grandes celebridades de uma época) e escreve Suave é a noitepara contar sua própria versão da história.

 

Essa valsa é minhapode parecer, à primeira vista, apenas uma grande curiosidade para entendermos uma geração de autores que ainda hoje nos fascinam (tanto por seus livros, como pela matéria de suas biografias). Mas seus méritos vão além disso. Zelda tinha um poder narrativo impressionante, uma escrita carismática, que nos traga para dentro da sua cabeça embriagada.

 

A nova edição da Companhia das Letras retoma o texto sobre o qual Caio Fernando Abreu, fascinado, escreveu: “Essa valsa é minhaé principalmente isso: a tentativa, apesar das mutilações, de continuar a vida. Com seus cortes bruscos, seus diálogos derramados e técnica às vezes desconjuntada, mas encharcado de emoção e entrega o livro flui — para usar a imagem da própria Zelda — ‘como a corrente clara e fria de um riacho de trutas’”.