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Em Crítica e clínica, Gilles Deleuze formula sobre o problema de escrever: “O escritor, como diz Proust, inventa na língua uma nova língua, uma língua de algum modo estrangeira. Ele faz nascerem novas potências gramaticais ou sintáticas. Ele tira a língua de seu uso costumeiro, fazendo-a delirar. O problema de escrever é inseparável do problema de ver e entender (...) há uma pintura e uma música próprias à escrita, como efeitos de cores e sonoridades que se elevam acima das palavras”. Potências: ótimo substantivo (assim mesmo, no plural) para atribuir à literatura do chileno Roberto Bolaño, mestre na problemática da escrita proposta por Deleuze. O delírio literário do escritor e sua capacidade de elevar qualquer coisa “acima das palavras” já se consolidam em seu segundo livro, A literatura nazi nas Américas, que permanece inédito no Brasil. Com inegáveis ares borgianos e costurada de maneira assustadoramente bestial e, ao mesmo tempo, cômica, a compilação de escritores — insanos, fascistas, com tendências paranoicas, depravados, fora de controle — fictícios das três Américas causa uma sensação violenta nos leitores, difícil de ser superada no espaço literário até pelo próprio chileno. Mais tarde, a surpresa de sua infinita capacidade de criação seria observada em 2666 e, claro, em Estrela distante, livro que aparece como uma extensão do último texto que se encontra na enciclopédia infestada de monstros nazistas.

 

Em cada perfil de A literatura nazi nas Américas, o chileno faz uso da premissa de Borges no conto Pierre Menard, autor do Quixote: o desatino de reescrever sempre a mesma coisa -- no caso de Bolaño, a bestialidade, a falta de escrúpulos, o totalitarismo político — como se fosse a primeira vez. Para além da problematização do plágio, em seu famoso conto, Borges parece, com ar zombeteiro, lançar aos leitores a pergunta: por que o desejo de reescrever alguma coisa? Por que não criar algo “novo”? Porque a literatura é repetição, é delirar e tirar a língua do seu eixo cotidiano ao contar uma reprise. A infinita transmissão do planeta dos monstros. Bolaño sabia disso como nenhum outro.

 

O motivo pelo qual um dos itens de mais valia da obra do chileno ainda não ter sido publicado pela Companhia das Letras (que tem feito um excelente trabalho em reeditar sua obra no Brasil, mesmo antes da “bolañomania”) permanece como folclórico mistério do universo literário brasileiro. Leitores, críticos e jornalistas chegaram a atribuir tal infortúnio editorial ao perfil de Amado Couto, no qual Bolaño cita os escritores brasileiros Rubem Fonseca e Osman Lins, este último “que lhe parecia francamente ilegível”. As confabulações foram veementemente negadas pela editora paulista na época. Aos leitores restam algumas opções, entre elas a edição portuguesa (com capa de gosto duvidoso) lançada pela editora Quetzal.