O artista comemora que se separou da esposa, vendeu o apartamento e largou o emprego: tudo para se concentrar. “Encontrei este lugar, um enorme estúdio, você precisa ver o espaço e a luz. Pela primeira vez na minha vida terei um lugar e tempo para criar.” No diálogo imaginário do poema “Ar e luz e tempo e espaço”, publicado no livro Textos autobiográficos, Charles Bukowski responde que esses quatro elementos nada têm a ver com isso: “Não, baby, se você vai criar, fará isso mesmo que trabalhe 16 horas por dia numa mina de carvão ou criará num cubículo com três crianças enquanto vive da previdência social, criará com parte de sua mente e de seu corpo estourados, criará cego, aleijado, demente, criará com um gato escalando por suas costas enquanto a cidade inteira treme em terremotos, bombardeios, alagamentos e fogo.”
Bukowski não está entre os 161 artistas cujas rotinas são esmiuçadas no livro Daily rituals: how artists work(Rituais diários: como trabalham os artistas), mas bem que poderia. O escritor e editor Mason Currey — não por acaso, ele próprio procrastinando em seu trabalho em uma revista de arquitetura — começou a reunir o modus operandide artistas dos últimos séculos em busca de inspiração para produzir. Procrastinar, esse curioso verbo que o dicionário Houaiss define como “transferir para outro dia ou deixar para depois; adiar, delongar, postergar, protrair”, é apenas uma das facetas dessa coletânea que fala não tanto sobre inspiração, mas sobre rotina e sobre como compositores, artistas visuais, escritores, cineastas e cientistas, entre outros, fazem para encarar o papel (ou a tela) em branco.
O autor buscou responder perguntas como: É melhor se dedicar apenas à criação ou manter um emprego estável para se sustentar? É mais produtivo dedicar todo o dia ou apenas algumas horas ao trabalho artístico? Vale a pena tirar alguns momentos para se exercitar ou é perda de tempo? A resposta sobre a melhor forma de usar o mais escasso dos recursos é tão múltipla quanto os personagens retratados. Além disso, há curiosidades inusitadas. O leitor fica sabendo que o compositor Ludwig van Beethoven preparava seu próprio café sempre com 60 grãos por xícara e que a escritora Gertrude Stein, entre um poema e outro, gostava de ir ao campo observar pedras e vacas. Cabia à sua companheira Alice Toklas dirigir para levá-la até o animal que lhe parecesse mais simpático naquele dia. E assim seguiam, de pedra em pedra, de vaca em vaca.
Todas as teorias que defendem que produz melhor quem acorda cedo (ou tarde) são relativizadas. O pintor Francis Bacon dormia poucas horas por noite, com a ajuda de pílulas e de livros de receitas. O cineasta Federico Fellini afirmava nunca dormir mais do que três horas por vez. Truman Capote preferia nem sair da cama — escrevia deitado, acompanhado por cigarros e cafés, e se considerava um “escritor horizontal”. Já Henry Miller redigia suas novelas da meia-noite até o amanhecer, até se dar conta de que era uma pessoa diurna. “Quanto mais cedo melhor” era o lema de Antony Trollope, que se sentava para escrever às 5h30 e terminava antes do café da manhã. Ele dizia que devia seu sucesso ao seu criado, que sempre o acordava exatamente no mesmo horário.
Além da hora de trabalho, o tempo a ele dedicado também não é consenso. Há os workaholicsassumidos, como a escritora Simone de Beauvoir, que sentia saudades do trabalho durante as férias. O filósofo Voltaire trabalhava entre 18 e 20 horas por dia (e adorava). O prolífico Stephen King não se dá direito a folga nem no dia do aniversário e se cobra escrever duas mil palavras por dia. A rotina do cientista político Karl Marx acontecia na sala de leitura do British Museum, onde ele trabalhava das 9h às 19h. Em casa, continuava escrevendo. De doze horas era a jornada de trabalho do compositor George Gershwin, que não acreditava em inspiração e dizia que só escreveria três músicas por ano se fosse depender dela. Já o pintor Matisse ficava indignado quando as modelos não queriam posar aos domingos. “Não posso sacrificá-los apenas porque elas têm namorados.“
Isso não quer dizer que os adeptos do lema “devagar e sempre” não fossem igualmente — às vezes até mais — produtivos. Henry Miller escrevia por apenas duas ou três horas por dia, porém sempre no mesmo horário, para manter o ritmo criativo. Gertrude Stein nunca escrevia mais do que meia hora por dia. Gustave Flaubert levou cinco anos para terminar Madame Bovary, ao ritmo de duas páginas por semana e bastante angústia. Mas o caso mais impressionante responde pelo nome de Georges Simenon, que escreveu 425 livros, quase a metade sob o manto de 16 pseudônimos. Ele não produzia diariamente, mas tinha picos de atividade que duravam algumas semanas, nas quais trabalhava por três horas diárias e conseguia obter oito páginas em casa sessão. Ou seja, tempo de dedicação e volume de produção nem sempre são diretamente proporcionais.
Trabalhos paralelos, correlatos ou não à atividade artística, também eram comuns. Mozart passava mais tempo dando aulas de piano e visitando mecenas do que compondo. O psiquiatra Carl Jung atendia pacientes por oito a nove horas por dia e ainda encontrava tempo para realizar seminários — os escritos se restringiam ao fim de semana. Quando prestava serviço militar, F. Scott Fitzgerald fazia o mesmo. Só ler sobre as tarefas de Toni Morrison já cansa: trabalhava em uma editora, dava aulas de literatura e criou dois filhos sozinha. Em compensação, evitava qualquer vida social. A relação é de amor e ódio: enquanto o escritor Wallace Stevens dizia que trabalhar foi uma ótima forma de ganhar disciplina, o artista plástico Joseph Cornell afirmava que odiava trabalhar (mas depois descobriu que também detestava não trabalhar).
Principalmente no caso das mulheres, surge ainda a questão do trabalho doméstico. A escritora Jane Austen contava com o apoio da mãe e das irmãs: ela escrevia na mesma sala em que as outras costuravam. Bastava a campainha tocar para fingir estar cerzindo também, pois sua atividade literária era secreta. “Escrever com a cabeça cheia de juntas de carne de carneiro e pedaços de ruibarbo me parece impossível”, afirmava. No entanto, a repetição das atividades do lar podem ser inspiradoras para alguns artistas. É o caso do coreógrafo George Balanchine, que afirmava fazer a maior parte do seu trabalho quando estava passando ferro nas roupas. A ilustradora Maira Calman gosta de arrumar a casa ou dar uma volta para se inspirar antes de começar a desenhar. No livro, ela avisa que procrastina, mas na medida certa.
Caminhadas e outros exercícios físicos aparecem como uma forma de desanuviar a mente e ganhar força para aguentar horas sentado. Beethoven andava todas as tardes, num ritmo vigoroso, e levava lápis e papel para anotar ideias musicais. A pontualidade das caminhadas do filósofo Immanuel Kant era tanta que os vizinhos sabiam que o relógio marcava 15h30 quando ele saía para andar. Autor de Do que eu falo quando eu falo de corrida, Haruki Murakami é corredor e considera que a força física é tão importante para quem escreve quanto a sensibilidade artística. Isso não quer dizer que todos levem uma vida saudável. A escritora Maya Angelou leva uma Bíbliae uma garrafa de xerez pros quartos de hotel onde escreve. A droga do cineasta David Lynch é... Açúcar. Ele só escreve depois de tomar milk-shake de chocolate e seis a sete xícaras de café extra doce.
Um ponto comum interessante em muitos dos artistas citados é o tempo para responder a correspondência, seja de familiares, amores e amigos, seja de fãs. Se hoje muita gente se julga afundado em um mar de e-mails e mensagens nas redes sociais, antigamente existia algo chamado carta, que também tomava muitas horas do cotidiano. O trompetista Louis Armstrong respondia a todas que recebia, sem a desculpa do “não tenho tempo para isso”. O escritor Edmund Wilson, além das cartas, também mantinha um diário. Artigos para periódicos eram uma demanda frequente. Ou seja, escrever não queria dizer apenas trabalho, mas também sociabilidade. Outros gostavam de ler em voz alta o que haviam produzido no dia. Era o caso de Mark Twain, que reunia sua família para leituras diárias e aguardava a aprovação de tão seleto público.
A agenda variável chega a ser motivo de preocupação para alguns. A escritora Francine Prose lembra que, quando seus filhos eram pequenos, ela tinha uma rotina fixa e sempre escrevia quando eles estavam na escola. Hoje, mesmo com mais tempo livre, sua preocupação é com as demandas além da escrita, que ela chama de atividades paraliterárias, inclusive mais lucrativas. O apego ao hábito mostra sua força na história do escritor John Cheever, que passou cinco anos vestindo um terno e pegando o elevador de casa para descer ao subsolo, onde ficava trabalhando de cueca. Talvez pensasse como o psicólogo e filósofo William James, para quem automatizar parte do cotidiano era essencial para liberar espaço mental pro trabalho criativo. “Não há ser humano mais miserável do que aquele em quem nada é habitual exceto a indecisão”, afirmava.
Conhecer rotinas muitas vezes tão atribuladas pode ser uma surpresa para os mais românticos, que fantasiam com os momentos de iluminação dos seus artistas favoritos. Poucos são, porém, os que aguardam sentados pela inspiração.
A escritora Ann Beattie fica meses sem escrever, porque não consegue forçar, mas não se diz muito feliz com isso. O escritor Edward Abbey dizia que detestava trabalhar sob pressão, mas era só dessa maneira que ele funcionava (e, por outro lado, adorava o pagamento adiantado). Para o compositor John Adams, sua experiência mostra que a maioria dos criadores tem uma rotina rígida e hábitos de trabalho nada glamorosos. O escritor William Styron tinha a seguinte frase de Flaubert na parede: “Seja regular e ordeiro na sua vida, como um burguês, para que você possa ser violento e original no seu trabalho”. E o escritor Bernard Malamud resume tudo: “Não há uma forma única — há muita bobagem sobre este assunto. Você é quem você é, não Fitzgerald ou Thomas Wolfe. Você escreve se sentando e escrevendo.” E ele não poderia ser mais exato.