Arte sobre foto de divulgação

 

A literatura brasileira gosta de grandes movimentos de câmera. É formada por obras e gerações que retratam questões amplas, sociais. Foi assim no romantismo que registrava a certidão de nascimento de um país; na Semana de 22 e sua criação de um ideal nacional e antropofágico; no regionalismo das críticas sociais... Uma das personagens mais famosas de Graciliano Ramos é Baleia, uma cachorra que simboliza o definhar de gerações de migrantes diante de longos períodos de estiagem. A morte da cachorra Baleia é conhecida até mesmo por quem só ouviu falar de Vidas secas.

 

Nos emocionamos com Baleia e sua famíla porque elas estão naufragadas numa condição radical de sobrevivência. São indivíduos, mas não são individuais. Estamos inseridos numa tradição literária, em grande parte, formada mais por ideias do que por personagens, por pessoas que poderiam ter carne, osso e traumas. Onde está o pequeno foco e a intimidade do brasileiro em sua literatura?

 

Ironicamente, a resposta para essa pertunta pode ser encontrada justamente naquele autor consagrado como o maior cânone do país, Machado de Assis. Capitu, Bentinho, Brás Cubas e Iaiá Garcia são nomes conhecidos, familiares. Sabemos quem eles são, o que sofreram e até a extensão dos seus olhares. Machado criava mundos ficcionais inesquecíveis justamente por povoá-los com pessoas, repletas de faltas, desejos e vazios. Essa é a tese que o escritor e ensaísta José Luiz Passos fomenta em Romance com pessoas, seu estudo machadiano, que recebe agora uma segunda edição ampliada pela Alfaguara. O ensaio consumiu de Passos mais de uma década entre pesquisa e escrita.

 

Tamanho empenho acabou resultando numa obra, ao mesmo tempo, profunda e acessível, em que nos aprofundamos ainda mais na vida dessas pessoas machadianas, num percurso que começa com justamente a estreia do autor, no romance, já quase esquecido, Ressurreição. Ali estava o germe de personagens dúbios, que despertam mais desconfiança que afeto. Ets diante das crias dos contemporâneos de Machado.

 

Segundo o ensaísta, um dos segredos do autor em erguer personalidades tão marcantes resulta do fato do livro dar conta de experiências de vida que se desdobram através de motivações inconfessas e autônomas. O valor moral do romantismo é deslocado em função das motivações pessoais de cada um dos personagens.

 

“O tratamento minucioso na composição das motivações dos personagens, então, garante a seus heróis a gravidade da autocrítica. São capazes de decompor e mascarar suas intenções inclusive para si; possuem a capacidade de se colocar na posição dos outros, de perceber juizos contrários nas decisões mais harmoniosas e, não raro, agir sob contradições das quais os demais não têm sequer a mínima percepção”, observa Passos, com a intimidade de quem conviveu por muito tempo observando essas pessoas dos livros.