Janio Santos sobre fotos de divulgação

 

Em seu romance Norte, Edmundo Paz Soldán, escritor boliviano radicado nos Estados Unidos, onde é professor de literatura, apresenta uma intrincada reflexão sobre o poder de absorção e rejeição desse país que é o “norte” de todos os latino-americanos — e que ocupa o imaginário criativo não apenas de Paz Soldán, mas de outros escritores contemporâneos como Daniel Alarcón, Soledad Cisneros, Junot Díaz e Reinaldo Laddaga. Em primeiro lugar, portanto, Norte pode ser entendido, literalmente, como um livro sobre a errância, a movimentação e a migração, sobre a necessidade de um destino ou meta e também sobre o que há de utópico e perigoso nesse desejo de movimento.

 

O romance articula quatro histórias paralelas, que são contadas pouco a pouco, a partir de fragmentos numerados e intercalados. Começamos no México de 1984 e, em seguida, estamos no Texas de 2008, que nos leva à Califórnia de 1931, retornando a Ciudad Juárez em 1984 e assim por diante, num movimento de concatenação de longos ciclos narrativos não necessariamente coincidentes. Há um assassino de origem mexicana, Jesús, que cruza a fronteira para cometer seus crimes; há um policial militar do Texas, Rafael Fernandez, também de ascendência mexicana, que investiga as mortes; há uma jovem boliviana, Michelle, que cursa pós-graduação em estudos literários na mesma região, mas 20 anos depois dos crimes; e, finalmente, Martín Ramírez, um camponês mexicano que passa décadas numa instituição psiquiátrica da Califórnia, desenhando.

 

Por que essa fragmentação? Uma das razões possíveis é o esforço de Paz Soldán de mostrar que toda reconstituição histórica é um processo convulsivo — há pedaços ativos de 1931 em 1984, assim como existem fragmentos atuantes de 2008 em 1931. Tanto Michelle, a jovem boliviana, quanto Martín Ramírez, espécie de Arthur Bispo do Rosário avant la lettre, fazem uso do desenho para expressar seus respectivos sentimentos de inadequação e de não pertencimento diante desse Norte assustador e insondável. Michelle luta para definir os traços de sua história em quadrinhos de zumbis; Martín Ramírez desenha túneis, trens, cavalos e cavaleiros, símbolos do trabalho que o fez cruzar a fronteira antes de perder a razão. “Desenhava a sala em que passava a maior parte do tempo”, escreve o narrador sobre Ramírez. “Paredes com janelas. Mas isso não lhe interessava tanto como desenhar o que havia dentro de seu crânio. O cinema de seu cérebro, como aquele a que fora algumas vezes com María Santa Ana em Los Altos”.

 

É importante ter em mente que tanto Martín Ramírez, o artista, quanto Jesús, o serial killer, são figuras históricas que Paz Soldán resgata e ficcionaliza em seu romance. Martín Ramírez, nascido em 1895 e morto em 1963, foi de fato um artista autodidata que passou a maior parte de sua vida internado numa instituição psiquiátrica, diagnosticado como portador de demência catatônica — e que ganhou fama póstuma como pintor. O personagem Jesús, por outro lado, foi baseado em Ángel Maturino Reséndiz, nascido em 1959, capturado pela polícia em 1999, executado em 2006, e que ficou conhecido na imprensa como The Railroad Killer, pois cometia seus crimes nas proximidades das linhas férreas. “Às vezes via gente nas casas, estudantes ou idosas sozinhas, e tentava entrar”, escreve Paz Soldán sobre Jesús. “Entraria para roubar, mas o roubo seria apenas um pretexto para o que lhe interessava de verdade. Mulheres que o ignoravam quando o viam perto de uma estação ou num supermercado. Gringazinhas incapazes de aceitar sua existência. Seria fácil despachá-las”.

 

Esse resgate do factual confere a Norte uma positiva potência de ambiguidade e de ambivalência. Nesse ponto, o romance de Paz Soldán se aproxima de livros como 2666, de Roberto Bolaño, que faz uso dos assassinatos de mulheres em Ciudad Juárez, no México (evento que Paz Soldán também incorpora a Norte, ainda que incidentalmente, assim como o faz também com a figura de Roberto Bolaño), ou Submundo, de Don DeLillo, que também lida com os Estados Unidos como uma espécie de entidade amorfa que tudo absorve, além de transpor à ficção outro caso de serial killer norte-americano, esse conhecido como The Texas Highway Killer.

 

Paz Soldán propõe, portanto, uma mistura desses dois universos de crime e horror — o mexicano de Bolaño e o estadunidense de DeLillo —, usando como ponto catalisador da mistura a própria fronteira entre os dois países. Essa fronteira, no fim das contas, serve tanto para ilustrar a relação entre fato e ficção como entre desejo e realização: é precisamente no processo de mistura que se dá a narrativa, sem que qualquer posição definitiva se estabeleça. Aquele “norte” que primeiro se anunciou como um ponto fixo, um local de segurança que seria imediatamente reconhecível uma vez alcançado, vai pouco a pouco, ao longo do romance, se transformando, ganhando as feições de uma utopia, de um buraco sem fundo, de uma ilusão.