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O título do livro novo de Adélia Prado, Miserere, é extraído da expressão latina “miserere nobis”, da liturgia católica, e implica num “tende piedade de nós”. É compreensível. A obra é uma longa conversa da poeta com Deus, mas jamais um diálogo pacífico: é contraditório, cheio de brechas, dúvidas, como tudo aquilo que envolve devoção (e devoção é jogo de poder, é altar, ainda que pagão). É preciso ir além nessa perspectiva: a palavra “católica”, que sempre é colada ao trabalho da escritora mineira, muitas vezes é confundida com uma possível perspectiva apaziguadora latente em sua literatura. Trata-se de um erro que deve ser evitado.

 

Adélia toma a ideia do catolicismo a partir da sua fixação por imagens, pelo drama humano, pela obsessão diante da carne que precisa ser castigada e exaltada e pela possibilidade de algum perdão, ainda que jamais definitivo. No poema “Distrações no velório”, enquanto observa a morta à sua frente durante uma noite inteira, repensa o sentido e a falta de sentido das coisas, para concluir: “Vou fazer um retiro, minha glicose subiu/ e mesmo com comprimido demoro a pegar no sono./ Deus, tem piedade de mim./ Peço porque estou viva/ e sou louca por açúcar”. Nada mais católico, ou cristão, do que esse olhar para cima sabendo onde os pés precisam se apoiar. Açúcar é sublime, porque carne e tentação.

 

Um pouco mais à frente, nos oferece uma observação de si própria sem qualquer quietude: “A alma se desespera, / mas o corpo é humilde; / ainda que demore, / mesmo que não coma, / dorme.”.

 

Nessa conversa sobre perdas e ganhos com Deus, a questão da passagem do tempo é tratada não com ironia, mas como o inevitável que simplesmente está à frente e não pode ser desviado: “Minha mão tem manchas,/ pintas marron como ovinhos de codorna. / Crianças acham engraçado/ e exibem as suas com alegria, / na certeza — que também já tive —/ de que seguirão imunes./ Aproveito e para meu descanso/ armo com eles um pequeno circo./ (…) Não perturbe inocentes, pois não há perdas/ e, tal qual o novo,/ o velho também é mistério”.

 

A condição feminina também não é esquecida, em versos como:“Eu sou uma mulher sem nenhum mel / eu não tenho um colírio nem um chá / tento a rosa de seda sobre o muro / minha raiz comendo esterco e chão. Quero a macia flor desabrochada / irado polvo cego é meu carinho. / Eu quero ser chamada rosa e flor / eu vou gerar um cacto sem espinho.”

 

Formado por 38 poemas, Miserere traz um dos melhores momentos de Adélia que, às vésperas de completar 80 anos (em 2015), se estabelece como uma das vozes mais potentes e criadoras de significado da literatura brasileira. A autora a atravessar desertos e, ao contrário do milagre cristão, nos lembra de que água tanto pode virar vinho quanto voltar ao seu estado original. Isso sim é humano. E divino.