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Com curadoria do escritor Joca Reiners Terron, a série Otra Língua, da Editora Rocco, tem realizado um excelente trabalho em furar o bloqueio do nosso mercado editorial em relação à literatura contemporânea dos países vizinhos. Ano passado, por exemplo, lançou um dos títulos mais importantes da obra de César Aira (talvez o grande nome das letras argentinas hoje),Como me tornei freira, numa edição cuidadosa, que contou com prefácio de Sérgio Sant’Anna. O mais recente da série é outro argentino, Fabián Casas, 48 anos, com os contos de Os Lemmings e outros. Apesar de fazer parte do circuito dos autores mais cultuados do seu país, era até então um inédito desconhecido por aqui.

 

Casas gosta de tomar como ponto de referência da sua obra a virada entre as décadas de 1970 e 1980, quando a América Latina comungava uma história comum de repressão política. Escolha parecida já havia sido feita pelo escritor chileno Alberto Fuguet em Baixo astral, romance que problematizou a forma como os adolescentes do seu país lidaram com a sombra de Pinochet. Num dos contos de Os lemmings, inclusive, um dos personagens toma uma decisão que seria bastante cara a Fuguet (o homem que ironizou o cânone do Boom com o manifesto McOndo): funda uma revista literária chamada 18 abutres, voltada a radicalizar a experiência do texto, num processo de terrorismo e autoterrorismo.

 

“A ditadura foi a disco music. Estava no lugar errado no momento errado. E se não, vejam-me: no meu quarto. Acabo de voltar do cine Lara, na avenida de Mayo. Venho de assistir a The song remains the same, do Led Zeppelin. Todos os sábados via com meus amigos esse mesmo filme. Na sessão coruja. Mal terminava, eu pegava o ônibus para chegar rápido em casa e trocar de roupa”, narra, ironicamente, o personagem do conto Os Lemmings, nos situando logo no primeiro parágrafo onde estamos e o quê “ouviremos” dali para frente no livro.

 

Esse jeito de Casas de aproximar a linguagem do personagem com o contexto histórico acabou lhe rendendo inúmeras comparações com o clássico O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger. É compreensível. O personagem Holden Caulfield simbolizava em sua forma de falar e no seu comportamento a necessária rebeldia contra o conformismo do Pós-Guerra. Casas, assim como Fuguet um dia, imaginou essa virada entre as décadas como uma espécie de tempo suspenso, em que o clima político pairava como um fantasma, ainda que não tão amedrontador assim, em meio aos mais jovens.

 

É justamente esse fantasma político, que só será compreendido anos depois pelos personagens, que aciona o mecanismo que dá força à obra de Casas (e também à de muitos autores latino-americanos contemporâneos): o processo de criar uma lembrança ficcional para compreender uma memória real já esmaecida.