Ilustração por Karina Freitas

 

1.

O escritor Cesar Aira, em quatro pequenos ensaios sobre a poeta Alejandra Pizarnik, insere questões que, a meu ver, podem ser remetidas diretamente a algumas leituras recorrentes em torno da poesia de Ana Cristina Cesar no Brasil. E, ainda mais agora, diante da edição de sua poesia completa, Poética, e daquilo que ela mesma sugere no forte e interessantíssimo Literatura não é documento (1980) em torno da construção do “autor nacional” como memória fixa, monopolizada e monopolizadora. Ou seja, quando um escritor se torna apenas um “museu de estado”. Contra isso Ana Cristina sugere “namorar o documento” e “uma visão circulante da literatura”. Aira indica, pois, que quase tudo o que se escreve sobre Pizarnik está sempre apontado a uma “certa desvalorização” e a uma “falta de respeito bastante alarmante”, porque a reduzem a um tipo de “bibelô decorativo na estante da literatura” a partir, principalmente, do fato de seu suicídio: “a pequena náufraga”, “a menina extraviada”, “estátua desabitada de si mesma” etc. E diz que apesar das boas intenções termina-se por congelar a literatura numa redução absurda.

 

E aí, não importa que o trabalho de um escritor tenha sido justamente o de descongelar o mundo, caso do de Pizarnik, de fazer o mundo fluir em uma operação sem fim. A questão passa a ser como apontar para um trabalho sem construir com ele uma “pequena estátua de terror”. Robert Musil já afirmara que os “monumentos devem se esforçar um pouco mais”. Isso tudo, de outro modo, nos lança ainda a dois problemas também sugeridos por Cesar Aira: um, quando se entende a arte a partir do resultado, ou seja, comércio e consumo, e aí figuram as inferências evasivas do leitor e do espectador; e dois, quando se entende a arte como uma experiência, uma resistência com a vida e com o mundo, e aqui figura o artista e seu modo de operação crítica e política.

 

Importante lembrar ainda que Ruy Belo, o poeta português que mais radicalmente construiu uma perturbação deliberada de afrontalidade em estado de móbil e oscilação constante ao peso atribuído à poesia e à figura de Fernando Pessoa, disse que “Escrever é desconcertar, perturbar e, em certa medida, agredir.” E acresceu que “Alguém se encarregará de institucionalizar o escritor, desde os amigos, os conterrâneos, os companheiros de luta, até todas aquelas pessoas ou coisas que abominou e combateu. Acabarão por lhe encontrar coerência, evolução harmoniosa, enquadramento numa tradição. Servir-se-ão dele, utilizá-lo-ão, homenageá-lo-ão. Sabem que assim o conseguirão calar, amordaçar, reduzir.”

 

2.

Por outro lado, um dado incomum: uma pequena e potencial poeta, das melhores, descobre numa oficina de poesia aos 14 anos que as coisas que faz/escreve parecem ir ao encontro da poesia de um nome que lhe era, até então, desconhecido: Ana Cristina Cesar. Devagar e sem pressa, apreende o nome, agradece à poeta-professora que lhe ministra a oficina sem perderem-se de vista, como é o gesto generoso da delicadeza e da amizade silenciosa, e dois anos depois registra que talvez a grande importância dessa poesia completa é que não se tinha “acesso” aos livros de Ana Cristina Cesar, que eles estavam “impossíveis”. Numa aprendizagem e como lição, o que se espera com a publicação desse Poética é esta ampliação do “impossível” e, principalmente, do empenho em torno do quanto a poesia é apenas “acesso”; ou seja, que a poesia de Ana Cristina Cesar consiga operar a radicalidade de sua modulação crítica e de seu pensamento vertiginoso, construídos à revelia de sua morte, sobre este prisma da “obra completa” entre resultado/consumo e experiência/resistência mantendo a zona de sentidos aberta.

 

O filósofo Jean-Luc Nancy deixa muito claro, como uma “resistência da poesia”, que a poesia não coincide consigo mesma e que é esta não coincidência — como impropriedade substancial — aquilo que faz propriamente a poesia. E afirma: “A poesia é assim a negatividade na qual o acesso se torna naquilo que é: isso que deve aceder, e com esse fim começar por se esquivar, por se recusar. O acesso é difícil, não é uma qualidade acidental, o que significa que a dificuldade faz o acesso. O difícil é o que não se deixa fazer, e é propriamente o que a poesia faz.” Desse modo, é possível entender o quanto a poesia é um gesto para o político e uma aventura para nada. E com este Poética temos de novo os livros de Ana Cristina Cesar por aí, entre o impossível e o acesso. Ou, como ela mesma escreveu, “solta — / à mercê do impossível — / do real” e “Preciso voltar e olhar de novo aqueles dois quartos vazios.”