Ilustração por Karina Freitas

“Invejo — mas não sei se invejo — aqueles de quem se pode escrever uma biografia, ou que podem escrever a própria. Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer.”

 

São palavras de Bernardo Soares, “semi-heterônimo” de Fernando Pessoa (1888-1935), em seu Livro do desassossego, que poderia ser definido como um livro sonhado. Pessoa morreu aos 47 anos sem ver concluído — como muitos outros projetos – essa obra. A amigos mencionou, em várias ocasiões, o processo de produção do seu Livro do desassossego (L.do.D). “O que principalmente tenho feito é sociologia e desassossego. Você percebe que a última palavra diz respeito ao livro do mesmo; de facto tenho elaborado várias páginas daquela produção doentia. A obra vai pois complexamente avançando. Os fragmentos dessa prosa são de depressão confessada, angústia e tédio”, escreveu a Armando Cortês-Rodrigues em 1914. Um ano antes, o poeta português havia publicado um texto na revista A Águia e deixou explicito que ele fazia parte de um projeto em construção chamado Livro do desassossego. Em vida, Pessoa publicou apenas doze fragmentos do L.do.D — todos em revistas-, mas entre as cerca de 30 mil folhas (escritas à mão e datilografadas) que deixou na famosa “arca”, estão por volta de 400 fragmentos que traziam a indicação de pertencerem ao Livro — muitos deles textos não concluídos. Coube aos editores o papel de vasculhar no espólio do escritor — hoje guardado na Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa — para tentar “montar” o livro que foi escrito durante mais de 20 anos e nem perto chegou de ser finalizado.

 

Por diversos motivos, entre eles as dificuldades de acesso ao espólio, a obra inconclusa demorou tanto tempo para ser publicada. Foi só em 1982, mais de 40 anos depois da morte do autor, que a primeira edição do Livro, organizado por Jacinto do Prado Coelho, saiu à luz. A ela se seguiram várias edições, como as preparadas por Teresa Sobral Cunha, Richard Zenit, Jerónimo Pizarro, em Portugal, além de outras publicadas no Brasil, Itália e Espanha. Cada uma diferente da outra, e inclusive entre elas mesmas, já que a cada nova tiragem os editores costumam acrescentar ou eliminar trechos numa tarefa infinita.

 

Se editar um livro é tomar decisões, no caso da L.do.D essa sentença toma contornos extremos. Não há e nem parece que haverá uma versão final dessa obra. “Não é um livro estável, cada proposta de organização é só uma possibilidade entre muitas”, diz o luso-colombiano Jerónimo Pizarro, 37, um dos pessoanos mais reconhecidos na atualidade. Pizarro acaba de publicar no Brasil e em Portugal uma edição do L.do.D, sua segunda, e se diz convencido de que dentro de dez anos, se organizar o Livro novamente, o fará distinto.

 

As diferenças entre as diversas edições do L.do.D começam pela quantidade de páginas/fragmentos, já que textos que Pessoa não deixou expressamente definidos como pertencentes à obra foram incluídos em algumas edições. “Em termos de organização, de sequência, talvez nunca tenha uma forma final. Em termos de corpus é difícil. Teresa Sobral Cunha sugere um livro com mais de 700 fragmentos; eu só inclui uns 400 e tal”, explica Pizarro. Alguns editores preferiram ordenar os fragmentos por data; outros, por temática dos textos. A própria autoria do Livro chegou a ser discutida, já que em princípio Pessoa anotou que seu autor era Vicente Guedes. Posteriormente apresentou como autor a Bernardo Soares, a quem chamou de um “semi-heterônimo” seu, ou uma “personalidade literária”. Em uma carta escrita pouco antes de morrer, Pessoa explicou: “É um semi-heterônimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afetividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de tênue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual”.

 

O poeta português Jorge de Sena, que conhecia bem o espólio do poeta e dedicou ensaios sobre o L.do.D nos anos 1970, antes dele ser publicado, defendia que Bernardo Soares representava um heterônimo “mais próximo” de Pessoa, e que o Livro era “uma espécie de refugo” do que não chega a pertencer aos outros heterônimos. Para Antonio Tabucchi, tradutor de Pessoa para o italiano, o L.do.D era um romance duplo. “Pessoa inventou uma personagem de nome Bernando Soares e delegou a ele a missão de escrever um diário. Soares é, portanto, uma personagem de ficção que adota a sutil ficção literária da autobiografia”. Uma autobiografia sem fatos, como definiu o Pessoa.

 

Se o L.do.D é um livro incerto quanto a forma e conteúdo, também o é quanto ao gênero. Trata-se de textos em prosa, lírica, escritos em primeira pessoa, que pode ser classificado como um romance, um diário confessional de reflexões íntimas e perturbadoras, um caderno de uma viagem estática por Lisboa, ou simplesmente um livro do e sobre o desassossego que é viver.

 

“Para mim o Livro, além das edições e junto com elas, são os fragmentos em que Fernando Pessoa ia dando conta de sensações num processo de autorreflexão sobre o processo de escrita. Como definiu o José Gil, é um laboratório da escrita pessoana em que tem cabido praticamente todos os estilos heteronímicos, por isso Eduardo Lourenço fala de texto suicida”, arrisca o argentino Diego Giménez, 36, doutorando em literatura pela Universidade de Barcelona e membro de um grupo de pesquisa da Universidade de Coimbra que trabalha na criação de uma plataforma online doLivro do desassossego (leia entrevista ao lado com o coordenador do projeto). O ensaísta português Eduardo Lourenço, mencionado por Giménez, não só classifica o L.do.D como texto suicida — no sentido de que “mata” os heterônimos para ser sobretudo Pessoa quem o escreve - , como o define como livro da “solidão perfeita”. “É um texto agónico, um texto-agonia por conta do nada e do ninguém, texto suicidário cuja função foi, porventura, a de evitar o suicídio real a quem nele se escrevia”, anotou o acadêmico. “Trata-se de livro total, dentro da obra de Fernando Pessoa, é o livro de uma época. Genericamente é abrangente e indefinido”, acrescenta Pizarro.

 

Seja o que for, o Livro do desassossego, que começou a ser escrito há mais de 100 anos e passou a existir para o público há pouco mais de 30, continua sendo um projeto, um sonho, uma utopia, um livro infinito e impossível. “Nunca terá uma versão final, não pode ter. Que significa ter uma versão final?”, questiona Giménez. “Sentimos a necessidade de certezas, mas em Pessoa a incerteza é rainha”, pondera.

 

O escritor deixou poucas pistas de como pensava armar seu L.do.D, o que faz com que cada nova edição do livro, cada nova proposta de montagem, carregue consigo o (ilusório?) desejo de compreendê-lo um pouco mais. O projeto da Universidade de Coimbra, que funciona como uma espécie de escavação genealógica no Livro, dos manuscritos originais e das edições já feitas, é mais uma dessas tentativas. Além de comparar as várias “versões” do L.do.Dpossibilitará também que o leitor monte o seu próprio Livro. Uma sorte de jogo que nos colocará no papel de editores de Pessoa; porque se, como sugere Pizarro, cada editor funcionar quase que como um heterônimo do poeta ao ajudar e a construir e perpetuar sua imagem postumamente, o projeto de Coimbra permitirá que essa tarefa seja estendida também à legião dos apaixonados leitores do poeta espalhada pelo mundo. Provarão do prazer e das dificuldades de editar o Livro do desassossego, uma obra inclassificável, definida por Pessoa como “um gemido”, ou “o livro mais triste que há em Portugal”. Um livro escrito desde a profunda inquietação, capaz de doer e maravilhar. Um livro que, como apontou Jorge de Sena, reúne a “mais bela prosa da língua portuguesa” em trechos como este: “Às horas em que a paisagem é uma auréola de Vida, e o sonho é apenas sonhar-se, eu ergui, ó meu amor, no silêncio do meu desassossego, este livro estranho como portões abertos ao fim duma alameda numa casa abandonada”.